1982 e o livro ilustrado dos nossos sonhos

Seleção Brasileira pronta para encarar a Itália no Sarriá. Em pé: Valdir Peres, Leandro, Oscar, Falcão, Luisinho e Júnior. Agachados: Nocaute Jack (massagista), Sócrates, Cerezzo, Serginho Chulapa, Zico e Éder.
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A memória é, muitas vezes, uma coisa cruel. Especialmente quando ela se detém sobre fatos negativos, momentos dolorosos que preferiríamos esquecer, mas que grudam na lembrança como aquela figurinha autocolante que a gente não posiciona direito e depois não tem santo que a descole sem estragar o álbum inteiro. Viver uma vida pensando no “se” é experiência doída e angustiante – e se a lembrança sempre acaba sendo útil no sentido de nos ensinar sobre o futuro, nem por isso se torna mais suave ou deixa de incomodar. Seguindo em frente com a tosca analogia, podemos dizer que, mesmo que a gente tenha feito a coleção com muita dedicação e conseguido todos os craques necessários, o nosso álbum de figurinhas da Copa de 1982 está arruinado para sempre. OK, a gente ainda o guarda com carinho, em uma gaveta especial e tudo o mais – mas evitamos tirar ele de lá e folheá-lo, porque logo chegamos na página estragada e nos dá aquela dor de não termos passado menos cola ou tomado mais cuidado na hora de colocar a figurinha no lugar.
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E, puxa vida, tinha tudo MESMO para ser uma página inesquecível no nosso álbum de seleções. Tínhamos, por exemplo, um escudo novo para colocar no alto da página. Depois de décadas incluído no grande guarda-chuva da Confederação Brasileira de Desportos, nosso futebol conquistava de vez a individualidade administrativa, com a CBF fixando sede no Rio de Janeiro e assumindo os rumos de nosso futebol. Em um momento de abertura política, com a ditadura militar perdendo força e o clamor democrático tomando as ruas, uma guinada como a CBF não deixava de ser um passo para o futuro – OK que o passo em si acabou não sendo exatamente a solução de todos os nossos problemas, mas enfim.
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A figurinha do técnico também era nova – e, no caso, era um técnico que daria até para carimbar como craque, se tal coisa fosse aceita nesse tipo de coleção. Telê Santana tinha uma considerável fama atrás de si, tendo conduzido momentos importantes de times como Fluminense, Grêmio e Palmeiras. Além disso, trazia uma combinação interessante de velho e novo, sendo capaz de arejar a nossa casamata sem os tropeços e hesitações de um Cláudio Coutinho, por exemplo. Telê era ex-boleiro, como os vitoriosos Zagallo, Vicente Feola e Aymoré Moreira – ou seja, tinha um conhecimento de futebol que ia além dos livros e das faculdades de educação física. Para muitos, era justamente o que tinha faltado a Coutinho – aquela malandragem das quatro linhas, uma subjetividade que só a vivência ensina e nenhuma teoria consegue abraçar de todo. Por outro lado, nosso novo jóquei era inegavelmente um entendedor de futebol, que pregava um esquema tático que valorizasse as melhores peças e acreditava na disciplina e na lealdade como bases para o sucesso. Além disso, Telê se diferenciava radicalmente de Zagallo e Coutinho no sentido de abominar o dito futebol de resultados. Para ele, vencer era importante, mas o topo de suas prioridades estava em desenvolver um futebol de alta qualidade, exuberante e com postura séria, profissional e leal. No time de Telê Santana não havia espaço para violência ou para galinhagem – mas ao mesmo tempo havia um entusiasmo pelo jogo vistoso, pela busca incessante do gol e pelo permanente anseio da vitória. Era nessa mescla de valores que a CBF apostava para a conquista do tetra – e convenhamos, era mesmo uma proposta das mais respeitáveis.
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E se as figurinhas até aqui eram boas, o que dizer do plantel de craques disponível para a coleção? Tratava-se, sem a menor dúvida, de um timaço, uma safra privilegiada que lembrava os plantéis de 1958 e 1970 pela fartura em certas posições. A famosa dupla de laterais do Flamengo, por exemplo: Leandro pela direita, Júnior pela esquerda, e do outro lado do campo uma equipe aturdida, sem saber o que fazer para controlar tanta técnica e velocidade. Na zaga, a experiência de Oscar passava segurança e garantia a eficiência no desarme. Falcão era um dos volantes mais elegantes do futebol mundial, tricampeão brasileiro pelo Internacional, coroado Rei de Roma graças aos triunfos em solo italiano. Na armação, Sócrates, o acadêmico com nome de filósofo, e um Zico arrasador no auge da carreira. Pelas pontas, os tinhosos Paulo Isidoro e Éder, com o jovem centroavante Careca infernizando os zagueiros adversários. E não dá para esquecer que sentavam no banco jogadores como Roberto Dinamite, Batista, Serginho Chulapa, Edinho e Edevaldo, todos com potencial para serem titulares de destaque nas principais seleções do planeta. Era sem dúvida uma enorme fartura de bons jogadores, um grupo generoso em boas peças e com marcante potencial ofensivo, bem dentro das preferências de Telê Santana.
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Esse time começou a ganhar forma definitiva a partir das Eliminatórias. Tivemos a sorte de cair num grupo bastante suave, encarando as frágeis seleções de Bolívia e Venezuela, e mesmo com alguns pequenos percalços garantimos a classificação com imponentes 100% de aproveitamento. Dessas partidas, foi nascendo a formatação tática de nossa seleção, sempre na lógica de acomodar as melhores peças tão cara ao nosso treinador. Para Telê, por melhor que fosse o meio-campo de Falcão, Sócrates e Zico, o setor acabava carecendo de um pouco mais de pulmão, digamos assim. Colocando Cerezo ao lado de Falcão, o combate de meio se fortalecia, o setor ficava mais robusto e capaz de balancear técnica com doses bem-vindas de vigor e força física. Já que não dava para escalar doze jogadores, Telê optou por abrir mão de Paulo Isidoro, deixando o ataque com um único ponteiro fixo. A decisão foi polêmica, causando forte reação contrária da opinião pública – alguns, inclusive, ainda devem lembrar Jô Soares e seu bordão “bota ponta, Telê!”, lançado no programa humorístico do Gordo e logo transformado em frase corrente no imaginário nacional. Essa formação foi se afirmando aos poucos, e mesmo não tendo sido usada na partida inaugural da Copa, acabou sendo a preferida durante a maior parte da campanha brasileira.
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Pontos de instabilidade existiam, de qualquer modo. No gol, por exemplo, Valdir Peres nunca chegou a ser uma unanimidade. Pelo contrário: arqueiro inconstante, capaz de grandes defesas, mas vulnerável a falhas brutais em momentos decisivos, Valdir Peres foi para a Espanha sob o signo da desconfiança. Muito se disse que Leão, nome destacado em 1978 e ainda em plena atividade, seria o nome certo para a posição – e que até mesmo os reservas Carlos e Paulo Sérgio estariam bem mais próximos de suprir as necessidades de uma seleção que disputa Copa do Mundo. Mas Telê Santana, fiel aos seus jogadores preferidos, não recuou: Valdir Peres era seu homem, estava prestigiado, e seria o camisa 1 do Brasil na Copa da Espanha.
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Outra posição complicada acabou sendo a de centroavante. Careca, jovem promessa revelada pelo Guarani, sofreu uma séria lesão às vésperas da Copa e foi vetado. Serginho Chulapa virou imediatamente titular. Roberto Dinamite, que tinha ficado fora da lista original, foi convocado em cima do laço para fechar o grupo que iria para a Espanha. Não que Chulapa fosse um jogador menor, longe disso – era atacante destacadíssimo, praticamente uma empilhadeira de gols pelo São Paulo, e tinha capacidade mais que suficiente para segurar o rojão. O problema é que o cidadão era um jogador meio, digamos, criador de caso – daqueles que provoca o adversário sem parar, dá chute na canela, enfia o dedo onde não deve, enfim, que faz tudo que pode para tirar a zaga do sério e abrir caminho para seus próprios gols. E Telê, sempre contrário a qualquer desonestidade, instou Serginho Chulapa a não agir assim durante a Copa. Que vencesse as disputas com futebol, na imposição técnica, sem apelar para atitudes antidesportivas. Uma medida louvável em termos de fair play, mas que provocou um efeito colateral: Chulapa ficou travado, desconfiado, temendo perder a titularidade conquistada na última hora. E acabou rendendo menos do que poderia.
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De qualquer modo, era uma seleção muito forte. Daquelas que é destaque em qualquer álbum ilustrado da Copa. Nos amistosos de preparação, passamos voando por seleções fortes como Inglaterra (1 a 0, gol de Zico, nossa primeira vitória no Wembley), Alemanha Ocidental (2 a 1) e França (3 a 1), todas subjugadas em seus próprios domínios. Desde o começo das eliminatórias até estrearmos na Espanha, o Brasil não perdeu um único jogo. Não surpreende, portanto, que tenha desembarcado na Espanha como um dos grandes favoritos ao título. Conta-se até que um computador italiano, durante uma daquelas exposições tecnológicas feitas para atrair o grande público, foi convidado a calcular qual seria a final da Copa de 1982. Brasil x Espanha, disse o equipamento. Se até as novas tecnologias diziam que o Brasil estava por cima, quem seríamos nós, meros torcedores, para duvidar?
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Estreamos no dia 14 de junho, no aprazível Ramon Sanchez Pizjuán de Sevilha, contra a intermediária, mas sempre respeitável seleção da União Soviética. Com a ausência de Cerezzo, suspenso depois de uma expulsão em partida internacional, jogamos em um 4-3-3 mais típico, onde Paulo Isidoro fechava como ponta direita e apenas eventualmente assumindo funções de suporte no meio-campo. Fomos para a partida de estreia com Valdir Peres; Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Falcão, Sócrates e Zico; Paulo Isidoro, Serginho Chulapa e Éder.
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E foi um sufoco tremendo, meus amigos/as. Nem um pouco amedrontados com o cartaz alto dos brasileiros, nossos oponentes jogaram com muita determinação, marcando sempre firme e aguardando brechas para as escapadas ofensivas. Luisinho, nervoso, cometeu várias falhas na zaga. E Valdir Peres, contestado e criticado Valdir Peres, começou a Copa dando razão a seus críticos: em falha bisonha, deixou o chute de Andriy Bal passar e ficou apenas com as penas do frango na mão, aos 33mins da etapa inicial. Já nesse momento inicial mostrou-se uma característica que, menosprezada no decorrer da competição, voltaria a incomodar na decisão do Sarriá: o desequilíbrio em momentos de pressão. Muito nervosos, nossos laterais e meias livravam-se da bola ao invés de trabalhá-la, dando chutes de muito longe ou investindo em simplórios chuveirinhos, que sempre acabavam nas cabeças da zaga russa ou nas mãos seguras de Dassaev. Não bastasse a ineficiência ofensiva, a defesa brasileira era uma pilha de nervos – e tivemos o desplante de cometer dois pênaltis de concurso, quando o placar ainda nos era desfavorável. Por sorte, as botinadas foram ignoradas pelo árbitro Lamo Castillo, por razões que a razão ainda desconhece. No segundo tempo, conseguimos uma reação, mais na base da vontade do que fruto de uma superioridade genuína. Com gols de Sócrates e Éder Aleixo, confirmou-se um agradável 2 a 1 para o Brasil – placar excelente, mas em uma partida que deveria acender o sinal amarelo (sem trocadilhos) para a Seleção.
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De qualquer modo, o progresso brasileiro foi visível na segunda atuação. Com Cerezzo de volta ao time, Telê optou por manter o restante do time, prestigiando nomes como Luisinho e Chulapa, de má atuação na estreia contra os russos. Deu certo: superior em todos os sentidos, o Brasil conquistou um dilatado 4 a 1 contra a esforçada seleção da Escócia. Saímos perdendo novamente, golaço de Narey de fora da área – mas o gol não era reflexo de uma superioridade dos escoceses, pelo contrário. Com calma, ciente de sua superioridade, o Brasil foi construindo de modo irresistível a sua reação. Zico empatou com uma maravilhosa cobrança de falta, e no segundo tempo a goleada se construiu ao natural, com gols de Oscar, Éder e Falcão. Depois de uma estreia conturbada, nossa seleção jogava bem e ganhava com folga – o suficiente para apagar os sinais de alerta e encher o Brasil de confiança.
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Contra a Nova Zelândia, então, foi um passeio. Novatos em Copas, os neozelandeses eram tão precários que tinham precisado importar às pressas algumas bolas da vizinha Alemanha, de modo que pudessem fazer os últimos treinos antes da viagem para a Espanha. Para eles, a Copa era um momento de aprendizagem e um divertido passeio – como os pedidos de autógrafos para os adversários brasileiros, antes e depois do jogo, não hesitam em confirmar. Passeio, dentro do campo, teve o Brasil: o 4 a 0, na verdade, foi até modesto em face à superioridade brasileira, podendo facilmente render um placar bem mais dilatado. Foi uma boa chance de exercitar jogadas, praticar movimentações, reforçar o entrosamento. Notem que o próprio narrador chega a se rir em alguns lances, divertindo-se com a criatividade e a incrível superioridade dos brasileiros. No fim das contas, o Brasil encerrava a primeira fase invicto, com dez gols a favor e apenas dois contra – prenúncio de uma grande conquista, certamente. O mundo já dizia, sem nenhuma reserva: o tetra brasileiro era iminente.
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A Copa da Espanha foi a primeira a ter mais de 16 participantes – no caso, 24 seleções disputavam a chance de conquistar o tão almejado título mundial. Na segunda fase, os campeões e vices de cada grupo eram organizados em quatro módulos triangulares, de modo que o vencedor de cada chave era conduzido às semifinais. O Brasil caiu no Grupo 3, contra duas seleções teoricamente difíceis: Argentina e Itália. Os hermanos já não tinham sido lá essas coisas quando ganharam o título em 1978, e haviam se classificado no segundo lugar de seu grupo, atrás da Bélgica. Contavam com Maradona, na época ainda considerado uma promessa, mas eram uma seleção inferior tecnicamente à nossa naquele momento. E a Itália, bem... Tinha se classificado com as calças na mão, superando no saldo de gols os estreantes de Camarões, e chegava totalmente desacreditada, tendo apresentado um futebol pobre e sem muitas alternativas. Paolo Rossi, o centroavante, havia sido convocado na última hora, depois de dois anos parado graças a um escândalo de manipulação de resultados. Homem de confiança do treinador Enzo Bearzot, foi escalado praticamente sem treinar, estava sem ritmo de jogo e não fez nenhum gol na primeira fase. Além disso, a crise entre jogadores e imprensa italiana era pesada: depois de denúncias ligando os atletas italianos a orgias homossexuais na concentração, os jogadores fizeram um boicote e não deram nenhuma entrevista para seus conterrâneos durante toda a Copa. Convenhamos, um clima péssimo. Que optamos por interpretar como sinal de fraqueza e de vitória facilitada para nós, quando talvez tivesse sido melhor o contrário: ver nessas circunstâncias o potencial de Fênix para uma seleção sempre tradicional e com capacidade de crescer na hora da adversidade.
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A partida contra a Argentina foi, talvez, o auge da técnica brasileira na Copa de 1982. Contra um adversário sempre matreiro e perigoso, fizemos uma partida próxima do impecável – equilíbrio defensivo, força de armação no meio e artilharia incessante na frente. Um futebol capaz de exibir tudo que de melhor o Brasil legou ao esporte, aliando técnica exuberante com altas doses de competitividade. Incapazes de enfrentar na bola essa pujança brasileira, os argentinos tentaram controlar nossos avanços na base da canelada; mesmo isso, porém, foi muito pouco efetivo. O terceiro gol, aliás, resume o que foi a partida: tabelamento de alto nível entre Zico e Júnior, com os pobres argentinos batendo cabeça, e uma conclusão forte, precisa, determinada. Um golaço, digno de uma equipe que dominou as ações e não deu chance para o adversário sequer cogitar uma reação. Maradona, a jovem esperança argentina, perdeu a cabeça e acabou expulso depois de uma entrada desleal em Batista. O placar final de 3 a 1, com um gol de Ramón Dias já nos minutos finais, acabou ficando leve para nossos amigos de azul e branco – precisavam vencer, mas por pouco não levam uma tunda de laço daquelas de fazer Chuck Norris ficar com pena. Abaixo, os grandes lances da partida, que servem para dar uma ideia de como o Brasil, de fato, tocou o terror nos argentinos.
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E foi mais ou menos a essa altura que erramos a mira, exageramos na Cola Tenaz, trememos na hora de encaixar as figuras nos espaços correspondentes – enfim, que fizemos besteira e estragamos o álbum inteiro. Porque OK, pode ser menos dolorido tratar Sarriá como uma tragédia ou como um desastre imprevisível, e certamente é mais fácil ver em retrospecto o que estava errado do que percebê-lo estando no olho do furacão. Mas... Os sinais estavam todos lá, meus amigos/as. O Brasil era incensado pela imprensa esportiva de todo o mundo, tido como virtual campeão, e transformando-se rapidamente num fenômeno não apenas futebolístico, mas também financeiro. A música “Povo Feliz”, gravada pelo lateral Júnior (aquela do “Voa Canarinho, Voa”, lembra?) tinha virado símbolo da campanha brasileira e o compacto que a continha vendia centenas de milhares de cópias. Em outro sentido, como o jogador Edinho revelaria mais tarde, alguns jogadores da seleção já estariam envolvidos diretamente com estratégias de marketing. Diz-se que, quando faziam ou participavam de algum gol, esses atletas iam correndo em direção a um ponto específico, de modo que as imagens posteriores da festa mostrassem a placa publicitária de um determinado patrocinador... A euforia era tamanha que alguns colunistas brasileiros chegaram a pedir calma, dizendo que não tínhamos ganhado nada – e convenhamos, quando a imprensa acha que está demais é porque o negócio está sério mesmo... Fosse como fosse, havia empolgação, havia euforia, havia muita confiança e pouca preocupação com o adversário. Como a Itália havia vencido os argentinos por 2 a 1, o Brasil tinha vantagem no saldo – ou seja, um singelo empate e a vaga para as semifinais estava na mão.
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Mas que empate, o quê? O sentimento de toda a opinião pública, ainda que não incentivado pela comissão técnica, era um só: o Brasil ia ganhar. E foi com essa confiança, com essa certeza arrasadora que entramos em campo no Sarriá, naquele histórico e trágico 05 de julho de 1982. Nem vale a pena nos aprofundarmos demais nos pormenores dessa partida: entre tantas análises já feitas sobre esse cotejo, podemos destacar essa aqui, feita pelo nosso Jovem colaborador Frederick Posselt Martins. Não temos pretensão de, em poucas e mal traçadas linhas, acrescentar o que quer que seja ao tanto que já se fez de análises sobre esse jogo histórico – mas nos parece justo e conveniente dizer que essa “tragédia” teve bem menos de trágico do que se costuma atribuir a ela. Na verdade, todos os aspectos negativos que fomos levando com a barriga no decorrer da campanha estouraram no Sarriá, em circunstâncias que nos foram impossíveis de superar. Foi uma partida disputadíssima, equilibrada, na qual ganhou o time mais eficiente. Simples assim – embora nós brasileiros, sempre orgulhosos, tenhamos dificuldades de admitir que sim, às vezes podemos perder de forma justa e dentro do campo, no confronto direto de futebol contra futebol.
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Tomamos o primeiro gol muito cedo, Paolo Rossi metendo uma bucha certeira logo aos 5mins. Valdir Peres não chega a ser culpado do gol, mas no lance a sua falta de agilidade fica muito evidente. Reagimos rápido, gol de Sócrates aos 12mins – mas logo Rossi aproveitaria outra bobeira brasileira para colocar a Itália de novo na frente. Depois do segundo gol, a Itália se resguardou ainda mais, criando sérios problemas para o setor ofensivo brasileiro. Pela primeira vez desde a estreia contra a URSS, o Brasil se viu diante de um adversário capaz de neutralizá-lo – e simplesmente não soube direito como lidar com isso. Fortes boatos dão conta de que Cerezzo e Leandro tiveram crises de ansiedade no intervalo, precisando de um incentivo enérgico da comissão técnica para colocarem a cabeça no lugar e voltarem para o jogo. Aos 23mins do segundo tempo, a salvação: golaço de Falcão, sem dúvida o jogador brasileiro mais eficiente naquele momento de pura pressão. A comemoração do geralmente contido jogador é intensa e emocionante, um verdadeiro desafogo de causar arrepios em quem ama o futebol. E aí, meus amigos, o que fazer nesse momento? Faltando cerca de vinte minutos para acabar, empate servindo para a classificação, era talvez o momento de colocar o regulamento embaixo do braço e jogar com tranquilidade, retendo a bola, enervando os italianos e esperando o apito final. Era o que a lógica e o pragmatismo diriam – mas seguimos atacando, Júnior arrancando feito louco pela esquerda, Sócrates e Zico acelerando as jogadas ofensivas, Chulapa chutando afobadamente ao invés de reter a bola. Fiel a si mesmo até o fim, Telê manteve o time jogando para a frente, e o Brasil seguiu querendo o gol, mesmo quando a classificação era muito mais importante do que a busca pela vitória. E sofremos o baque fatal: mais uma falha coletiva, mais uma bucha certeira de Rossi, mais uma vez a Itália na frente. Não foi uma má partida brasileira, pelo contrário: foi um jogo igual, e qualquer um poderia ter vencido. Mas o Brasil, mesmo precisando do empate, pensou sempre na vitória; a Itália pensava na classificação. Venceu quem buscou um objetivo prático e aproveitou as chances a contento. Tragédia? Nada disso: foi, pura e simplesmente, o triunfo de quem jogou melhor. Não é esse, no fim das contas, o objetivo de todo jogo de futebol?
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Pelo segundo mundial consecutivo, embarcávamos de volta para casa com a sensação de termos sido injustiçados pelo destino. Mas desta vez era um pouco diferente: de fato, tínhamos uma equipe de altíssimo nível, que havia apresentado futebol vistoso e competitivo, e um único tropeço tinha sido suficiente para nos vitimar. Mas assim sempre foi e sempre será, com muitas seleções, em várias Copas do Mundo do passado e do futuro. 1982 foi a nossa vez; uma pena, mas enfim. Demorou um pouco para superarmos o baque, e isso se manifestou nas duas Copas seguintes, antes que 1994 nos reconciliasse com os títulos mundiais, ainda que à custa de certos dogmas de nosso futebol. Seja como for, e apesar dos pesares, ficamos com muitas boas lembranças de 1982 – e ainda guardamos com carinho o álbum de figurinhas, mesmo que ele esteja manchado de cola e com as páginas amassadas. De vez em quando tomamos coragem e mostramos para nossos amigos, com um sorriso de quem traz boas e bonitas recordações. Talvez até comentemos: “pois então, aqui eu errei na medida, colei errado, ficou meio estragada a folha, mas tudo bem, essa seleção era o máximo!”. E era uma bela seleção, mesmo. Perdeu, porque seleções de alta qualidade também podem perder. Mas merece a lembrança leve dos que fizeram um bom papel, e um cantinho bem protegido na gaveta onde guardamos nossas mais agradáveis memórias.
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Fotos: Brasil pronto para cair de pé no Sarriá (Brazil in the World Cups); melhor capa de álbum de figurinhas da história (Arquivo - UOL); Telê Santana, sempre um fio de esperança (WebGalo); Zico contemplando a História na partida contra a URSS (Efe); Cerezzo e Maradona em belo confronto individual (timesonline.co.uk); e Paolo Rossi, entre dois brasileiros, se preparando para esmagar os prognósticos (Arquivo - Folha Online).
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No próximo capítulo: mais uma vez invictos, mais uma vez sem taça - ou, 1986 e a história de um pênalti traiçoeiro

Comentários

Vicente Fonseca disse…
Só golaço essa seleção. Humilhou a Argentina que, basicamente, era o mesmo time campeão de 1978 - acrescido de Maradona, o que não é pouca coisa.

Ouvi um documentário dizendo que o time tinha um modo de jogar com o Paulo Isidoro (o 4-3-3 contra a URSS), mas que na hora da Copa o Telê botou o Falcão, e que isso teria atrapalhado - não o Falcão em si, mas um possível desentrosamento dele com o restante do time. Duvido muito, até porque o Brasil cresceu de rendimento a partir da entrada do Falcão na Copa.
Igor Natusch disse…
Pois é. Essa teoria não parece muito convincente - mesmo porque o primeiro jogo, com o Paulo Isidoro, foi tranquilamente o mais deficiente do Brasil durante toda a Copa. Li uma entrevista do Telê na qual ele destilava uma certa mágoa com as críticas que recebeu antes da Copa - dizia que armou todo um esquema para suprir a falta do ponteiro direito, e que foram injustos na avaliação que faziam do time. Era uma armação semelhante com a de 1970, no sentido de escalar os melhores jogadores e montar o esquema a partir daí - e, mesmo sem título, só sendo rançoso para dizer que aquela seleção de 1982 fracassou...
Vicente Fonseca disse…
É preciso dizer que neste documentário foi o próprio Paulo Isidoro quem levantou esta questão - e outros jogadores que estavam ao lado dele (Éder, Serginho, Cerezo) não discordaram do que ele falou.