O Duce não botou a bola no barbante


Como a Argentina em 1978, ou a Inglaterra, em 66, a Itália campeã mundial em 34, também é estigmatizada pela influência de fatores externos nas suas conquistas. Em todos os casos, com boa dose de razão. Documentários e livros mostram o interesse de Benito Mussolini nas conquistas da Azzurra para legitimar a ideologia fascista, e pode ter havido, sim, pressão para que os italianos conquistassem a taça.

Ainda assim, Il Duce não marcou os gols. Como Videla nada poderia fazer se aquela bola na trave argentina entrasse quase no finzinho do segundo tempo em 78, e Hitler não parou Jesse Owens, ou conseguiu baixar um decreto para que seus arianos fossem mais rápidos que o afro-americano. Além disso, times como o Brasil de 62, ou a Argentina de 86 não foram campeões exclusivamente pelos erros de arbitragem que os favoreceram, nem poderia ser diferente. Mesmo que não se torça nem se admire uma seleção que entrava em campo erguendo o braço direito, as participações italianas na Copa seguinte, e em outras tantas depois, só mostram que ali, além do fascismo, também se impunha uma pátria do futebol.

Tudo foi feito sob a batuta de Vittorio Pozzo, lendário treinador, único bicampeão em Copas ocupando este cargo e único a vencer Olimpíada e Copa como técnico. Com ele a Itália se tornou quase imbatível, tendo em seu comando 63 vitórias em 95 partidas. Pozzo fora jogador, e treinador do Torino desde 1912, aos 26 anos, idade em que também treinou a seleção nacional nas Olimpíadas. Em 24, treinou pela segunda vez a Azzurra nos Jogos Olímpicos e em 1929 tornou-se treinador da seleção novamente. Dessa vez permaneceria no cargo por dezenove anos (!), saindo em 48.

Diz-se que Pozzo admitia entender mais de psicologia que de tática. Tendo combatido na I Guerra Mundial, diante da pressão para a conquista da Itália como anfitriã, ele teria encerrado os jogadores em um retiro pastoril, seguindo disciplina militar de treinamentos.

Os donos da casa chegavam ao Mundial com apenas três derrotas em suas últimas 28 partidas. Diante da ideia de “vencer ou morrer”, os italianos se reforçaram com sul-americanos, recolhendo vários oriundos que jogavam na Itália, principalmente argentinos. O time que bateu facilmente os Estados Unidos (7 a 1) na estreia, contava com o atacante argentino Raimondo Orsi, que fora medalha de prata por seu país natal nos Jogos Olímpicos de 1928, e após contratado pela Juventus; e com o também hermano Luis Monti, aquele mesmo meio-campista pegador vice-campeão mundial em 30, pela Argentina.

Jogou também o brasileiro Anfilogino Guarisi, o “Filó”, que após carreira de sucesso no futebol paulista fez parte da “BrasiLazio”, com mais três brasileiros, e acabou sendo o primeiro brasileiro campeão mundial, mesmo só tendo jogado esta primeira partida. A partir do segundo jogo, o argentino Enrico Guaita passaria a jogar e ser peça-chave do ataque italiano. Havia ainda, no banco de reservas, o argentino DeMaria, que disputaria o jogo-extra contra a Espanha.

Mas as principais peças do time eram nascidas na Itália. Os atacantes Giovanni Ferrari e Giuseppe Meazza eram os pensadores da equipe. Ferrari seria um dos únicos bicampeões mundiais e é até hoje um dos maiores vencedores do futebol italiano com oito scudettos conquistados por Juventus, Internazionale e Bologna. Como treinador, comandou a Azzurra na Copa de 1962. O outro único bicampeão foi justamente Meazza (33 gols em 53 jogos pela seleção), uma instituição do futebol italiano. Jogando mais recuado, Meazza foi o grande armador da equipe, em 1934 – a inversão de posição dele com Schiavio foi um dos grandes trunfos de Pozzo naquele Mundial. Em 1938, se tornaria capitão e a voz de Vittorio em campo.

“Meazza marcou época com uma jogada que era sua maior característica: quando ficava cara a cara com o adversário, praticamente parava, ‘chamando’ o goleiro em sua direção. Quando o infeliz na frente dele saía do gol, Peppino o tirava da jogada com uma finta e completava para o gol vazio”, conta a revista Placar, “Os 100 maiores craques do século” (Ed. 1157).

A segunda partida, e duelo de quartas-de-final, foi uma das mais célebres batalhas de Copas do Mundo, diante da Espanha. Em 120 minutos, o placar ficou em 1 a 1 (gol de Ferrari para a Itália). A atuação do arqueiro espanhol Zamora o elevou ao status de lenda do futebol. Entretanto, o goleiro (que havia defendido até pênalti contra o Brasil nas oitavas) estava extenuado e não jogou a partida extra marcada para o dia seguinte, bem como vários jogadores de ambas as equipes. Neste jogo, o baixinho Meazza (1,69 de altura) marcou o único gol, apoiando-se nos ombros de um colega de equipe para subir de cabeça.

O adversário da semifinal seria o Wunderteam austríaco, equipe mais badalada da Europa, que em fevereiro de 34 havia batido a própria Itália, em Turim, por 4 a 2. Durante as décadas de 30, 40 e meados da década de 50 o melhor futebol do Velho Continente era praticado na Europa Central, em países como Áustria, Hungria, Tchecoeslováquia, e a própria Itália.

Os austríacos tinham seu craque, era Matthias Sindelar. O goleador de origem tcheca foi um dos grandes personagens do futebol no entre-guerras. Admirado por todos em Viena, chegado à boemia, sendo quase uma estrela aos moldes atuais, recusou-se a jogar pela seleção alemã após a anexação da Áustria em 1938. Um ano depois foi encontrado morto em sua casa junto com a namorada, sufocados por monóxido de carbono – acidente comum à época - mas que gera especulações até hoje.

Pois o mesmo Luis Monti, que sofrera ameaças dos uruguaios em 30 por seu futebol violento, foi quem marcou e anulou Sindelar em 1934 com sua virilidade peculiar. Ainda assim, foi Matthias quem sofrera a famosa penalidade não marcada pelo árbitro sueco Ivan Elkind, que teria “conversado” com Mussolini antes desta partida. O jogo acabou em 1 a 0 para os italianos, gol de Enrico Guaita, aos 19 do primeiro tempo.

Os tchecoslovacos que bateram Romênia, Suíça e Alemanha, sempre com placares apertados, eram os adversários da finalíssima. Os eslavos contavam com outro goleiro mítico: Frantisek Planicka, já bem retratado pelo Carta na Manga. Tinham o artilheiro da Copa, Nejedly, cinco gols, e Antonin Puc (34 gols em 60 partidas pela Tchecoslováquia, maior artilheiro desta seleção).

“Tivemos azar com os guarda-redes: fugimos das garras de Zamora, caímos nas de Platezer, depois deparamo-nos com Planicka. No meio-campo os tchecos têm Cambal, apesar de ter se apagado na prorrogação. Jogador técnico, de jogo preciso. No ataque, destacam-se os veteranos Svoboda, Nejedly e Puc. Contra um adversário destes tínhamos de ter dificuldades”, diria Vittorio Pozzo.




A primeira etapa terminou em zero, e na volta do intervalo, a Itália cedeu espaços aos tchecos, o que culminou com o gol de Puc já aos 31 da segunda etapa, o que fez Pozzo temer pelo pior, mas os italianos foram atiçados pelo tento adversário. “O gol de Puc foi como uma chibatada em um cavalo fogoso”, disse Pozzo.

A Itália se recuperou na base da vontade, fazendo com que Planicka trabalhasse sucessivamente com Guaita e Schiavio sempre trocando de posições. O gol saiu aos 36, com o argentino Orsi. Aos cinco minutos da prorrogação, Schiavio marcou com um tirambaço que não deu chances a Planicka.

É inegável que a Itália era uma campeã com a cara do fascismo. Queria ganhar a qualquer custo, tal e qual a política expansionista e totalitária de Mussolini. No próprio jogo da equipe isso se refletia, com um jogo muitas vezes viril, de muita vontade, ganhando sempre em verdadeiras batalhas, com insistência e luta. Mas era também a Itália de um grande treinador e de um gênio como Meazza. Uma Itália que seria campeã olímpica em 1936 e bicampeã mundial em 38.

Na verdade, era o que hoje podemos chamar de velha Azzurra, com seu futebol disciplinado, que ganha muitas vezes sabe-se lá como, mas que sempre conta com um punhado de bons jogadores e tem sempre os dedos perto da taça quando se trata de Copa do Mundo.

Foto: time campeão, sob as bençãos de Mussolini, no Estádio Nazzionale (fifa.com); Vittorio Pozzo pensando na morte da bezerra (planetadofutebol.com); o galã Giuseppe Meazza (biografiaonline.it)

Comentários

Vicente Fonseca disse…
E quase que a Itália perde, hein?

Mais uma vez grande texto, desmitificando chavões com informação.