1938 - um Diamante racha, e o título escapa

Brasileiros perfilados para o cerimonial antes da estreia contra a Polônia. O time brasileiro está à direita na foto. Escalação: Batatais; Domingos da Guia e Machado; Zezé Procópio, Martim Silveira e Afonsinho; Lopes, Romeu, Leônidas da Silva, Perácio e Hércules. 


Se a gente fosse tentar resumir o ano de 1938 em uma palavra, talvez “carregado” fosse uma boa escolha. Afinal, a Europa via-se envolta em um clima político dos mais tensos que se possa imaginar, com a escalada de regimes totalitários e hostilidades cada vez mais abertas entre as grandes potências da região. Como sabemos, a Segunda Guerra Mundial estouraria no ano seguinte – mas uma coisa é saber agora, mais de setenta anos depois; estar no meio dos acontecimentos é outra bem diferente. E todo mundo naqueles dias sabia, acima de qualquer dúvida, que era questão de tempo até a coisa feder. Não bastasse isso, a Espanha – uma das mais destacadas seleções da Copa de 1934 – estava mergulhada numa sangrenta guerra civil que se estenderia até o ano seguinte. Nesse clima, digamos assim, carregado, uma Copa do Mundo acaba sendo mais do que uma chance de desanuviar tensões – torna-se, também, um elogio à vida, justamente no momento em que a morte está tentando arrombar a porta da razão.


O Brasil, ainda bem, conseguiu contribuir positivamente para essa nobre tarefa – e mais que isso, teve em 1938 a chance de começar a resolver-se consigo mesmo. Depois de duas campanhas pouco brilhantes, a esperança de todos era que o Brasil finalmente conseguisse montar uma grande equipe e sustentar uma boa campanha no Mundial da França. A chance era perfeita. Após a desistência da Argentina, revoltada com a decisão da FIFA de sediar a Copa novamente na Europa, o Brasil foi dispensado da disputa de eliminatórias. Além disso, graças à iniciativa pacificadora de América (RJ) e Vasco da Gama, foi promovida a união de forças entre a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), ainda amadora, e a já profissional Federação Brasileira de Futebol (FBF). Finalmente livre das brigas bairristas e desavenças políticas que haviam minado a seleção em 1930 e 1934, o Brasil iria contar com força máxima, levando para a Copa o que de melhor havia no país em termos de futebol.


E não pense que era pouca coisa, meu amigo/a. Mesclando os melhores nomes da seleção de 1934 com atletas impedidos de participar pelas picuinhas entre CBD e FBF, e somando a essa base a qualidade de algumas promissoras revelações, tínhamos tudo o que era necessário para montar um plantel de alto nível. Entre os sobreviventes da Copa da Itália, podemos citar o meio-campista Martim Silveira, revelado pelo Guarany de Cruz Alta (RS) e que levantou taças no Botafogo e no Boca Juniors (ARG) e o atacante Rodolfo Barteczko, mais conhecido como Patesko e que foi titular na solitária partida de 1934 contra o selecionado espanhol. Luisinho, um dos “contratados” pela CBD na Copa anterior e que estava defendendo as cores do Palestra Itália, também seria convocado novamente para a Copa da França.


Debaixo das traves, uma saudável disputa entre os arqueiros Válter (Flamengo) e Batatais (Fluminense) garantia a qualidade necessária. Na zaga, a presença majestosa de Domingos da Guia (foto) dispensava maiores apresentações. Uma das maiores ausências de 1934, o “Divino” era agora um dos centros técnicos da seleção, e a famosa “Domingada” – quando Domingos saía a dribles entre os atacantes adversários para armar a jogada de ataque – era uma das grandes armas contra os europeus. Ao lado dele, a presença forte de Machado, de longa história na Portuguesa de Desportos e no Fluminense. E no ataque, além de nomes como Romeu, Niginho (que havia jogado anos antes na Itália, defendendo a Lazio) e os já citados Patesko e Luisinho, tínhamos o diferenciado Leônidas da Silva, simplesmente um dos maiores atacantes de nossa história. Não vamos nos estender muito na análise desse craque, já que em breve ele terá um artigo só para si – mas a carreira do Diamante Negro já era um enorme sucesso, com títulos estaduais por três dos quatro grandes do futebol carioca, e seu talento era a grande esperança de gols de nossa seleção. Fama que, acreditem, só ia aumentar dali para frente...


Na casamata, o nome da vez era Adhemar Pimenta, que surgiu como treinador no Bangu e que já havia orientado o selecionado brasileiro no Sul-Americano do ano anterior, no qual a Argentina saiu vitoriosa. Embora fosse um profissional respeitado, Pimenta sofreu algumas críticas pela sua desatualização quanto aos esquemas táticos aplicados no Velho Continente – enquanto a Europa utilizava largamente o WM, o treinador insistia no 2-3-5, considerado ultrapassado na época. Pressões vinham de todos os lados, com os grandes clubes do Brasil querendo seus maiores astros aparecendo no time titular. E, como veremos logo adiante, o ‘coach’ brasileiro sofreria também com uma série de imprevistos e situações pouco recomendáveis, que acabaram minando parte do potencial de sua seleção. A viagem para a França, a bordo do Arlanza, durou longos 15 dias, o que causou inevitáveis transtornos físicos – o atacante Romeu, por exemplo, teria engordado quase nove quilos no período. Antes mesmo de o navio partir, problemas: autorizadas pelos dirigentes da delegação, as esposas de Nariz e Luisinho embarcaram para a viagem, desautorizando Adhemar Pimenta – que havia proibido mulheres a bordo – e revoltando os demais atletas, privados do mesmo privilégio. Escalas foram feitas em Salvador e Recife, e em uma delas os atacantes Tim e Patesko, alas titulares da seleção, foram surpreendidos tomando um belo trago. Adhemar teria exigido junto a Castelo Branco, chefe da delegação, o desligamento por indisciplina dos dois atletas; seu pedido, porém, foi ignorado. Como foram ignorados também os porres que os dois tomaram já em território francês, mesmo que testemunhados pelo próprio Castelo Branco. Como se não bastasse, alguns jogadores recebiam privilégios nas acomodações dentro do hotel e até sendo dispensados de treinos físicos. Com tudo isso, o burburinho e as intrigas tornaram-se inevitáveis, com reflexos inevitáveis no desempenho do time.


A estreia dos brasileiros deu-se no dia 05 de junho, no Stade de la Meinau em Strasbourg, contra a seleção da Polônia. Como a fórmula seguia sendo a de chaves eliminatórias em jogo único, quem vencesse avançaria rumo aos quartos de final. Depois de brincadeiras etílicas e gestos de indisciplina, os jogadores Nariz, Luisinho, Tim e Patesko acabaram barrados por Pimenta, numa tentativa de reconquistar o respeito dos demais jogadores. O Brasil entrou em campo com Batatais; Domingos da Guia e Machado; Zezé Procópio, Martim Silveira e Afonsinho; Lopes, Romeu, Leônidas da Silva, Perácio e Hércules.


Apesar de ser a primeira partida dos poloneses na história das Copas, o jogo foi muito disputado. Na primeira etapa, o domínio foi brasileiro. Leônidas começou a escrever seu nome na história daquela Copa já aos 18mins, marcando o primeiro gol da partida. O polonês Scherfke empataria em uma cobrança de pênalti, mas Romeu e Perácio garantiriam a vantagem e o 3 a 1 no intervalo. No segundo tempo, previa-se um jogo tranquilo para o Brasil – mas aí desabou uma chuvarada sobre Strasbourg, o que enlameou o gramado e limitou o toque de bola brasileiro. Além disso, brilhou no meio da lama a qualidade do surpreendente atacante polonês Ernst Willimowski. Já tendo sido o responsável pelo pênalti que resultou no gol polaco da primeira etapa, “Ezi” marcaria três gols em quarenta e cinco minutos, forçando o jogo a um surpreendente 4 a 4 – Perácio, em seu segundo gol no jogo, garantiu o empate para o Brasil.


Na prorrogação, disputada num grande lamaçal, o duelo particular entre Willimowski e Leônidas se intensificou – e com vantagem para o brasileiro, que marcou dois gols no tempo extra, contra um do ‘forward’ polonês. Reza a lenda que um dos gols do Diamante Negro foi marcado com o pé descalço – a chuteira teria se rompido no meio da lama, e enquanto o brasileiro esperava na beira do gramado por um novo calçado, o goleiro Madejski escorregou ao cobrar um tiro de meta e deixou a bola livre para o atacante. De chuteira na mão, Leônidas aproveitou o presente e guardou sem piedade para o fundo das redes. No fim, ambos os times saíram no lucro. O Brasil com uma bela e suada vitória por 6 a 5, e a Polônia com uma estreia muito digna em Copas do Mundo, além do então recorde de gols em uma só partida de mundial - que só seria superado pelo russo Oleg Salenko, na Copa de 1994.


Seis dias depois, no Parc de Leseure de Bordeaux, o adversário brasileiro seria a Tchecoslováquia. E a nossa sina de passar maus bocados diante de times do leste europeu manteve-se inabalável. O adversário era forte, contando com estrelas como Oldřich Nejedlý (artilheiro da Copa de 1934 com cinco gols), o temido ‘striker’ Ludl e o grande goleiro František Plánička, o “gato de Praga”. Com praticamente a mesma equipe da partida inaugural (apenas o goleiro Batatais seria substituído por Válter), o Brasil acabou conquistando um complicado empate em 1 a 1, em uma das partidas mais violentas que o Mundial tinha visto até então. Aos 30mins, o onipresente Leônidas abriu o placar, quando o Brasil já tinha um atleta a menos – Zezé Procópio havia sido expulso, após chutar sem bola o tcheco Nejedlý.


A pancadaria comeu solta na segunda etapa, e o árbitro húngaro Paul von Hertzka teve que fazer vista grossa para não expulsar todo mundo. Nejedlý empatou aos 20mins da etapa final, cobrando pênalti cometido por Domingos da Guia. No final do jogo, Machado e Riha brigaram a socos, sendo igualmente expulsos. Findo o tempo regulamentar, Perácio e Leônidas saíram de campo, machucados – conta Max Gehringer em sua “Saga da Jules Rimet” que o Diamante Negro levou mais de cinco minutos para ser atendido. Nejedlý, com o pé direito fraturado, também abandonou o jogo. Com tudo isso, e como não havia substituições na época, o Brasil foi à prorrogação com apenas sete atletas, contra nove da Tchecoslováquia. No tempo extra, brilhou o lendário Plánička. Mesmo tendo ficado com o braço visivelmente fora do lugar, depois de um choque com Perácio, o goleiro fechou o gol e, com várias grandes defesas, garantiu o empate e a disputa do jogo extra. Depois do jogo, diagnosticou-se que o arqueiro havia sofrido uma luxação na clavícula... Convenhamos: se hoje esse jogo é chamado de “Batalha de Bordeaux”, não é a troco de nada! 


A partida de desempate seria disputada apenas dois dias depois, no mesmo Parc de Leseure. Ciente do desgaste de seus atletas, e acreditando no potencial do restante do grupo, Adhemar Pimenta resolveu escalar um time de reservas, esperando superar os adversários na base do preparo físico. A ideia era não escalar nenhum dos atletas relacionados na partida anterior, mas um imprevisto forçou uma mudança de planos. Niginho, reserva de Leônidas, estaria em pendência com o Lazio, que havia abandonado para retornar ao Brasil, e portanto legalmente impedido de jogar a Copa. Para evitar um incômodo, Pimenta manteve Leônidas na equipe – junto com o goleiro Válter, já que Batatais não tinha plenas condições físicas de jogo. E essa decisão mostrou-se eficiente a curto prazo, mas fatal para o progresso da campanha. A partida terminou com uma vitória de virada: 2 a 1 sobre os extenuados tchecos, com um gol e grande atuação de Leônidas – o segundo tento, o da vitória, foi marcado pelo humilde Roberto, atleta do São Cristóvão (RJ). Porém, o Diamante Negro saiu de campo carregado, músculos em frangalhos, à beira de uma grave distensão.


Muito se falou de que Adhemar Pimenta, num gesto de arrogância, teria decidido poupar Leônidas na semifinal contra a Itália, acreditando numa classificação tranquila para a grande final. Outros alegaram que Benito Mussolini teria usado sua influência nesse caso, “sugerindo” a Leônidas que não entrasse em campo... Analisando a situação com mais cuidado, vê-se que as acusações são um tanto injustas: o Diamante Negro, já então apelidado de “Homem Borracha” pelos franceses, simplesmente não tinha condições de entrar em campo. Inviabilizada a participação de nosso principal jogador, e com seu reserva imediato legalmente impedido de jogar, Pimenta optou por deslocar o ‘inside-forward’ Romeu para a centroavância, já que o atleta teria atuado naquela posição em algumas partidas pelo Fluminense. Luisinho e Patesko, reconciliados com o treinador e de boas atuações no desempate contra a Tchecoslováquia, permaneceram no time para a semifinal. Mesmo com todo o esforço, a ausência de Leônidas pesou muito no moral dos atletas, além de ter resultado em inegável desvantagem técnica diante dos italianos, campeões de 1934 e favoritos para o bi. O Brasil inteiro acompanhou o jogo, em pleno feriado de Corpus Christi, graças à transmissão pioneira do grande radialista Gagliano Neto. Porém, aquele 16 de junho não seria dia de festa brasileira, e nossa seleção tombou no Stade Velódrome de Marselhe pelo placar de 2 a 1. Houve quem dissesse que o Brasil jogou de igual para igual, mesmo com o cansaço e os desfalques, sendo vitimado pela roubalheira da arbitragem. Pessoas presentes ao ‘match’, no entanto, desmentem essa versão, como podemos ver nesse depoimento de João Saldanha, citado no site da BBC Brasil:


"Os italianos poderiam ter vencido de goleada. Eu estava sentado atrás do gol do Brasil e vi nosso goleiro defender até pensamento. Fomos bombardeados."


Gino Colaussi e Guiseppe Meazza, de pênalti, marcaram os gols italianos; Romeu, deslocado por Pimenta para a posição de Leônidas, teve boa atuação e descontou no finalzinho da partida. O pênalti, criticado por alguns como um erro da arbitragem, foi confirmado por seu próprio autor, Domingos da Guia: depois de desarmar Piola, recebeu um discreto pontapé, revidou e teve sua agressão testemunhada pela arbitragem, que prontamente assinalou o lance capital. No fim das contas, e apesar da fatal ausência de Leônidas, foi um placar justo – e que conduziu a eficiente seleção italiana para a conquista de seu segundo título mundial. E a torcida, aqui no Brasil mesmo, acabaria reconhecendo os méritos de nossos atletas: depois de uma reação raivosa à derrota, com direito a distúrbios controlados pela polícia, surgiu um sentimento de orgulho pela boa campanha, intensificado depois da conquista do terceiro lugar e que resultou em grande festa no retorno da delegação ao Brasil.

Leônidas retornou ao time na decisão do terceiro lugar, disputado contra a Suécia no Parc Lescure de Bordeaux. Na partida, o Brasil demonstrou grande brio, virando um jogo que perdia por dois gols de diferença e conquistando um categórico 4 a 2. O Diamante Negro marcou dois gols na partida, finalizando a Copa como artilheiro da competição com sete gols. Os outros dois tentos foram assinalados por Romeu e Perácio, com Jonasson e Nyberg fazendo os números do lado sueco.

No fim das contas, pode ter sido uma campanha inferior ao seu potencial – afinal, quem pode dizer o que teria sido se nosso craque feito de borracha e diamante tivesse disputado o jogo contra os italianos, ou se tivéssemos eliminado a Tchecoslováquia sem a necessidade de um desgastante jogo extra? Mas foi, pela primeira vez em nossa história, uma campanha que correspondeu às expectativas, e que apontava um caminho importante para nosso futuro. Mesmo com todos os percalços, problemas internos e imprevistos dentro e fora do campo, chegamos nas cabeças de uma Copa do Mundo – e a partir dali, o nosso horizonte era muito mais alto e promissor. Tivemos que esperar longos doze anos por uma nova chance, já que a Segunda Guerra estourou em 1939 e manteve o mundo ocupado demais em contar corpos para poder pensar em futebol. Uma chance que, no fim das contas, acabou virando uma chaga e uma grande lição, como geralmente são as grandes decepções de nossas vidas. Mas enfim, isso já é 1950, e 1950 é outra história...

Fotos: seleção brasileira pronta para encarar a Polônia (Brazil in the World Cups); Domingos da Guia, com a camisa do Boca Juniors (Wikipedia); delegação brasileira sai para dar uma banda (Histórias do Futebol); Leônidas mete bucha contra a Polônia (Brazil in the World Cups); Perácio entra sem medo contra a Tchecoslováquia (Copa 2014); Válter soca o que vê pela frente no confronto contra os italianos (Arquivo - Folha Imagem); e Leônidas faz a fama e senta na grama (UOL).


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Na próxima quinta (18/03): O Maracanã silencia, e o Brasil aprende uma dura lição

Comentários

Baita relato, meu velho!

O jogo contra a Polônia deve ter sido uma das partidas mais lindas daquela Copa. Pena não haver nada gravado. Ademais, acredito que o gol descalço de Leônidas foi real, mesmo.

O Brasil ficou bem desgastado nas partidas, não só por causa das batalhas que enfrentava, mas também pelas viagens de trem que tinha que fazer de uma cidade a outra para jogar as partidas (4 jogos em 11 dias, mais viagens de trem... é pra ferrar o vivente).

E Planicka era um baita goleiro, sem comentários. O que li dele no "Deuses da Bola", até onde eu lembre, não tá no gibi.

Abraço
Vicente Fonseca disse…
Sempre que olho a campanha de 1938, tenho a impressão que foi o jogo extra contra a Tchecoslováquia que comprometeu a atuação diante da Itália. Lendo esse relato, confirmo muito minhas desconfianças: não sabia que o duelo com os tchecos havia sido tão duro assim como disseste. Certamente isso prejudicou muito a semifinal - fora a lesão de Leônidas, sem dúvida um desfalque terrível.

Fico imaginando como o Brasil, 3º colocado numa Copa, voltaria aplaudido para casa nos dias de hoje...

Nem vou elogiar o texto pra não cair em lugar-comum.