Jogo agendado ≠ jogo jogado
O assunto já foi alvo de um post nosso há poucos dias atrás, texto que pode ser lido aqui. Mas o surgimento de novos dados e de uma considerável polêmica a respeito justificam uma nova abordagem do mesmo, desta vez expondo minha opinião pessoal sobre o caso. Espero que os leitores aceitem bem essa nossa pequena insistência.
Qualquer ser vivo que tenha ao menos passado pelas cercanias de Porto Alegre na quarta-feira passada sabe muito bem o calor que fez naquele dia. Não era simplesmente uma temperatura alta, que faz a gente suar e procurar uma sombra: era um calorão horrendo, desesperador, daqueles que acaba testando o nosso repertório de adjetivos de tão absurdo que é. Não foi à toa: tratou-se, simplesmente, da mais alta temperatura registrada em Porto Alegre no último século... E foi, além disso, uma quarta-feira de futebol no Olímpico – Grêmio x São Luiz, 17h, debaixo do sol mais escaldante que essa cidade já viu. Se é que dá para chamar de futebol o que aconteceu naquelas circunstâncias..
Uma situação extrema, sem dúvida – afinal, não é todo dia que faz 41,3ºC por aqui. Mas suficiente para motivar uma atitude do Sindicato dos Atletas Profissionais do Rio Grande do Sul, que entrou na Justiça tentando evitar situações semelhantes. Na tarde de ontem, o juiz Rafael da Silva Marques, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), ampliou em liminar uma decisão anterior do próprio Tribunal, proibindo a realização de jogos de futebol entre 10h e 18h, independente da competição – e condicionando a disputa dos mesmos no período entre 18h e 19h30 a uma temperatura inferior a 35ºC.
Obviamente, essa medida força a mudança de horários em vários jogos já agendados – e isso despertou a reação contrária de muita gente. O presidente da FGF, Francisco Noveletto, já decretou a falência dos pequenos clubes com a medida, além de desfiar argumentos do tipo “jogador de futebol é preparado para aguentar isso”. Veículos de comunicação, previsivelmente, já estão repercutindo a coisa toda – com direito a protestos indignados de alguns comentaristas e longas reportagens mostrando os “prós e contras” da medida. Nessa segunda-feira mesmo, o programa “Hoje nos Esportes” da Rádio Gaúcha dedicou nada menos que quinze minutos (de um programa que dura menos de cinquenta, contando os comerciais) para repercutir a polêmica. Tudo muito natural, mas não podemos ignorar que a empresa por trás desses mesmos veículos colocou muito dinheiro na transmissão de jogos pela TV, em horários que a liminar agora proíbe...
Pena, para os que tentam nos convencer que a medida é absurda e inaceitável, que seus argumentos são quase todos perfeitamente desmontáveis. Há quem diga, por exemplo, que é inviável a medição de temperatura pré-jogo, já que o termômetro marca uma temperatura no sol e outra na sombra. Falácia: basta instalar um termômetro junto ao placar eletrônico e tomar aquela medição como base para a decisão. Há quem diga também que a medida prejudica os torcedores, que não mais saberão com certeza o horário de irem aos jogos e podem desistir de comparecer. Saberão sim, do mesmo jeito que sabem hoje em dia – os jogos serão forçosamente agendados para 18h ou além, mudando os horários de agora, como em qualquer remanejamento de datas feito desde que o futebol é futebol. A não ser que a imprensa se recuse a noticiar essas mudanças...
Adiamento é algo que é (ou deveria ser) relativamente normal, como em qualquer partida atingida por chuvarada ou nevasca que se vê por aí. Aliás, a situação é análoga: do mesmo modo que um campo virado em piscina ou tomado de neve prejudica os atletas, um sol escaldante em horário inadequado pode causar muitos problemas, como qualquer um vitimado por insolação pode testemunhar muito bem. E sem essa de dizer que jogador de futebol tem que encarar porque “ganha bem” ou é “preparado” para isso – basta lembrar que o zagueiro gremista Rafael Marques teve que tomar soro depois de jogar na quarta, tendo perdido mais de 8% de massa corporal durante a partida, quando 5% já é suficiente para causar um colapso... É curioso ler comentaristas criticarem a medida do TRT, alegando que se joga debaixo d’água ou em gramados péssimos, e não há reclamações. Erros sendo utilizados para defender outro erro, pura e simplesmente – e por um comentarista que, em texto anterior, defendia justamente a medida que agora critica, como se vê aqui e aqui...
Na verdade, a grande questão que se pode levantar é, sem dúvida, a financeira. Há um contrato em vigor, envolvendo clubes, federação e emissoras de TV, que prevê a realização de jogos em determinados horários para transmissão em rede aberta ou pay-per-view. Obviamente, a liminar prejudica o pleno cumprimento desse acordo, e isso causa incertezas financeiras para os envolvidos. Mas e o futebol, como é que fica? Não dá para desprezar a importância da televisão para financiar o trabalho dos clubes, mas não é de hoje que vemos o espetáculo se tornar escravo da agenda televisiva, independente das circunstâncias. Tive a oportunidade de tocar nesse assunto nesse post, inclusive. E são os clubes que agregam valor ao horário da TV, e não o contrário... É óbvio que quem comprou o pacote pay-per-view pode se sentir prejudicado por mudanças – mas valerá a pena, em nome desses consumidores, prejudicar atletas e torcedores que vão ao estádio querendo ver futebol, e não algum esporte remotamente assemelhado disputado em situações plenamente adversas? Hoje em dia, partida agendada é partida jogada, porque o jogo vai passar na tevê e todo o resto que se lasque – é o esporte sujeito ao veículo que o transmite, de uma maneira que já está beirando o absurdo.
Se o mundo fizer algum sentido, a medida tomada pelo Tribunal será mantida, os atletas e árbitros terão sua integridade física preservada do calor surreal de nosso alto verão, e se colocará um mínimo de racionalidade na relação entre futebol e as emissoras de TV que o transmitem. Não é questão de ser politicamente correto, nem de pintar a televisão como a vilã da história – mas sim de incentivar a busca de um meio-termo, onde as pretensões de todos os lados sejam levadas em conta e o espetáculo da telinha não passe por cima da lógica e do bom senso. A TV terá que adaptar seus horários – é uma tendência. E que se possa, sim, adiar uma partida de futebol quando ela for impraticável – em nome do esporte, que é o que de fato interessa.
Comentários
Quanto aos horários de jogo, acredito (e isso é só uma opinião minha, claro) que é mais adequado já saber que não vai ter jogo nenhum às 16h do que ficar esperando para ver se o termômetro vai permitir a partida ou não. Esperar uma hora, uma hora e meia, vá lá - mas certamente a quantidade de jogos adiados seria muito maior se ainda fosse permitido o agendamento dos jogos num horário "de risco". Além do mais, me parece necessário dar uma radicalizada, até para forçar a discussão a respeito disso e, como apontei no texto, fazer com a TV se adapte um pouco ao horário do futebol e não o contrário.
De qualquer modo, longe estamos de uma posição definitiva. O Noveletto está falando uma série de coisas com as quais não concordo, mas a questão da Série B é de fato um problema que precisa ser analisado. E é claro que proibir jogo às 16h no friozinho de junho não é nada necessário... Ainda há que se aparar as arestas, mas apoio a medida, e me revolto com algumas posições que tenho lido de comentaristas por aí...
eu nem levo a sério os argumentos pq sei que a base deles é unicamente esta.
Aliás, gostei muito do posicionamento do Reche e do Campelo quando entrevistaram o Piffero
http://www.correiodopovo.com.br/Esportes/?Noticia=96996
Quanto aos jogos em tais horários, eu entendo que essa liminar do juiz deveria ser adotada no verão, e no inverno a coisa mudar (proibir jogos depois das 20h, por exemplo, naquele frio do cacete, onde você não sente os dedos dos pés na arquibancada). Como o Natusch disse, antes de mais nada vem a saúde do atleta.
E eu concordo quanto a "radicalizar" para que se acabe essa palhaçada de o futebol se submeter ao horário da TV. Ricardo Teixeira fez isso em 2000 ou 2001, num Brasil x Argentina. Por que a Justiça não pode fazer?
Cê tá me entendendo?