Discussão necessária, mas acessória

Primeiro foi o presidente da Federação Baiana de Futebol, Ednaldo Rodrigues. Agora, é o presidente do Grêmio, Romildo Bolzan Jr., que tem apoio do Santos e, diz ele, de alguns outros clubes. Nunca, nesses últimos 12 anos, a discussão "mata-mata x pontos corridos" ganhou tanta força e repercussão. Passou da esfera das arquibancadas, conversas de bar e redes sociais para ganhar o gabinete dos principais dirigentes do futebol brasileiro. Em breve, parece, chegará à toda-poderosa CBF.

A discussão é válida. Já fui um grande defensor dos pontos corridos, por considerar este modelo um avanço, um exemplo vindo das melhores ligas de futebol do planeta. Permite calendário o ano inteiro para todos os clubes, o que ajuda a aumentar a venda do campeonato para outros países, e dá maior força econômica a todos. Em tese, premia a regularidade. E, também em tese, premiaria quem é mais regular ao longo da competição, aquele que se preparou melhor para disputá-la.

Há alguns anos, porém, venho questionando tudo isso. Primeiro, por um motivo absolutamente irracional: a saudade de ver uma final, uma semifinal, as fases decisivas de um Campeonato Brasileiro. Isso não é, porém, uma razão minimamente embasada para questionar a fórmula. Mas vamos a outros casos: o Flamengo de 2009 era o clube mais organizado do país? Certamente não. Era o mais regular? Olha, em sua campanha rumo ao título, levou 5 a 0 do Coritiba e chegou a virar o turno em 14º lugar. No mata-mata, isso também pode acontecer. O Coritiba de 1985 chegou a ser campeão nacional com saldo negativo de gols. Trata-se, apenas, de dois exemplos isolados e extremos, claro. Nada que questione a validade de dois títulos absolutamente merecidos, conquistados na bola, dentro do regulamento.

Mas, falando em regulamento... O entrega-entrega das últimas rodadas desanima. A rodada de clássicos na reta final parecia resolver o problema, e de quebra dava um bônus: tornar interessante a reta final para times que, na tabela, já estavam com futuro decretado. Em 2011, tivemos um campeonato praticamente perfeito do ponto de vista competitivo: 19 dos 20 clubes entraram com algum interesse na última rodada, nem que ele fosse atrapalhar a vida do rival. Havia disputa acirrada por título, vaga na Libertadores, na Sul-Americana e contra o rebaixamento. E para impedir os confetes da outra agremiação da cidade.

Aí, a CBF resolveu exinguir a rodada de clássicos. Tivemos três campeonatos, de 2012 a 2014, inegavelmente "chochos", como disse Bolzan. Em todos com o campeão sendo decidido bem antes do fim, e, em 2013 e 2014, sem sequer a disputa pela Sul-Americana, já que a CBF resolveu mudar o regulamento e premiar de forma bizarra aqueles que se deram mal na Copa do Brasil do ano seguinte com uma vaga no segundo torneio continental do mesmo ano. De 19 times interessados na última rodada de 2011, tivemos apenas 7 disputando algo em 2014 - e disputas do tipo "vaga direta nas oitavas da Copa do Brasil do ano que vem". Mas fria impossível. Isso não é bom sob nenhum ponto de vista, nem mesmo do mais racional.

Os pontos corridos prometiam aumentar a média de público. Dos pouco mais de 12 mil torcedores por jogo de 2002, pulamos a 20 mil em 2009. Houve uma queda, um novo avanço, e chegamos a cerca de 17 mil em 2014. É pouco. Tão pouco que campeonatos anteriores, com mata-mata, superaram esta marca. E o calendário? Os times grandes jogam até dezembro, é verdade. Mas nosso calendário segue problemático, com estaduais inchados, e um Brasileiro de 38 rodadas espremido em seis meses e meio. Em 2002, quando a ideia dos pontos corridos tomou forma, a promessa era de um certame que começasse no final de março, com jogos apenas aos finais de semana. Copas no meio de semana, estaduais de dois meses e uma folga maior para a realização dos jogos do maior campeonato do país. Foi assim só em 2003. De 2004 a 2011, o aumento de datas para os estaduais, e consequente adiamento do começo do Brasileiro, só cresceu. E voltamos a uma estaca levemente parecida (ainda que bem melhor) à dos anos 90. Isso sem falar que não apenas os clubes grandes devem jogar até dezembro, mas principalmente os pequenos precisam de atividade permanente, sob risco de fecharem as portas.

Os pontos corridos prometeram muito e entregaram bem menos do que prometiam lá atrás, no início do século. Fala aqui um defensor inicial da ideia dos pontos corridos, agora simpático ao retorno dos mata-matas. Mas isso não é culpa dos pontos corridos. E é como um agora simpático à volta dos mata-matas que digo: um retorno à fórmula antiga não resolverá problema algum. O motivo é simples, e aparentemente contraditório: os pontos corridos não resolveram quase nada no nosso futebol. E há uma razão simples: qualquer fórmula no futebol brasileiro é mal executada. Mudou o formato, mas a cabeça de quem manda no esporte mais popular do país é a mesma da pior época do nosso maior campeonato, quando mais de 90 clubes chegavam a disputá-lo.

Como bem disse o Trivela, a discussão sobre qual a melhor fórmula é uma cortina de fumaça para um modelo de administração falido, seja dos clubes ou das federações. Mudar o formato de disputa é como reformar a fachada da casa para que os vizinhos a achem mais bonitinha, mas por dentro mantê-la cheia de infiltrações, cupim, sofás rasgados e louça mal lavada. A mudança precisa ser muito maior, profunda. Vale a pena ler o artigo que linquei acima: ele agradará defensores dos dois lados da eterna polêmica do formato do Brasileiro, pois escancara que o problema do nosso campeonato não é o seu formato em si. Os pontos corridos não representaram um avanço, nem o mata-mata será um retrocesso, defensores dos pontos corridos. Mas o mata-mata não será a salvação, nem os pontos corridos mataram o futebol brasileiro, caros amigos da trincheira dos mata-matas. Dá pra fazer um campeonato lucrativo, interessante, de calendário cheio, com qualquer uma das duas fórmulas. Desde que ela seja bem executada.

A mudança precisa estar no cerne, não no formato: precisa ser de gestão, a partir da união entre os clubes, não em termos rodada de clássicos ou uma finalíssima. Nisso, Bolzan acerta: abre seu mandato no Grêmio dialogando com outras equipes, tratando-as como colegas em uma mesma trincheira, não como inimigas. Mas precisamos ir muito além, como os 7 a 1 nos avisaram, e pouquíssimos se deram ao trabalho de pôr a mão na consciência. Quando chegarmos nesse nível, o que levará talvez décadas, aí sim, a discussão "mata-mata x pontos corridos" será encarada como o que de fato é: uma briga para ver qual a tinta mais bonita para uma casa de fato bem reformada, por dentro, nos alicerces mais profundos. Por enquanto, esses formatos aparentemente antagônicos são apenas dois injustiçados, pois foram mal executados por cabeças que não sabem como executá-los de forma adequada.

Comentários

Vine disse…
Incrível como se pode traçar uma relação muito didática entre futebol brasileiro e velha política...
Vicente Fonseca disse…
Uma relação velha, manjada, mas que segue explicando tudo de ruim que vemos em nossos gramados.
Lourenço disse…
Sou meio pessimista em geral em relação ao futebol brasileiro. Gostei do texto pela visão de que não muda muita coisa. Os pontos corridos são sem graça, mas a Copa do Brasil também tem sido nos últimos anos. Em tempo, tenho me surpreendido positivamente com a postura do Romildo no começo de gestão, sobretudo pela disposição de discutir as questões do futebol brasileiro.
Vicente Fonseca disse…
Sério que tu não gostou da Copa do Brasil desse ano? Eu achei empolgante, tirante o fiasco de que time que cai cedo vai pra Sul-Americana.

Também acho que, mais até do que o mérito dos assuntos tratados, o Romildo merece elogios pela postura que tem tido, especialmente no que diz respeito a dialogar com outros clubes, em tempos onde provocar e ofender tem sido a regra, mesmo entre dirigentes.