Muito mais que o altiplano


Truco; Borja, Sandy, Quinteros e Rimba; Cristaldo, Melgar, Erwin Sánchez e Baldivieso; Etcheverry e Ramallo. Imagino que muitos de vocês talvez tenham ouvido falar de no máximo dois ou três nomes desta escalação. Para mim, porém, ela nunca saiu da cabeça. Coisa de criança: eu tinha 10 anos de idade quando o time acima fez história, colocando a Bolívia pela primeira vez em uma Copa do Mundo em 44 anos - data que completou 21 anos primaveras sexta. E times marcantes na nossa infância são times que ficam marcados para sempre.

Levar a normalmente fraca seleção boliviana a uma Copa já seria um feito e tanto, mas aquela histórica equipe fez muito mais do que isso nos mágicos meses de julho, agosto e setembro de 1993. O time treinado por Javier Azkargorta (mesmo técnico que levou o Bolívar às semifinais da Libertadores de 2014) foi o primeiro a bater o Brasil na história das eliminatórias, e o único a derrotar a equipe de Parreira na trajetória do Tetra; aplicou duas goleadas históricas na Venezuela, por 7 a 1 e 7 a 0 (o Uruguai ganhou só de 1 a 0 fora de casa dos venezuelanos, por exemplo); eliminou da Copa a bicampeã mundial Celeste, vencendo o jogo em La Paz por 3 a 1. Tudo isso apresentando um futebol bem jogado, e não apenas na altitude - embora, claro, ela tenha ajudado.

A base daquela seleção boliviana vem de 1986. No ano em que Maradona ganhava o mundo, o Diablo Etcheverry e seus comparsas ganhavam o Sul-Americano Sub-17 (único título oficial da história da seleção ao lado da Copa de América de 1963). Da Academia de Fútbol Ramon Tahuichi Aguilera, saíram nomes como Erwin Sánchez e Luis Cristaldo, titulares do time que fez história em 1993. Ou seja: muito mais do que simplesmente um time que soube aproveitar o fato de jogar nas alturas, a Bolívia do início dos anos 90 é resultado de um projeto de médio e longo prazo bem executado.

É claro que algumas situações também colaboraram para o sucesso da equipe de Azkargorta, mas elas são essencialmente técnicas. O primeiro é o fato de as eliminatórias transcorrerem em um espaço de apenas dois meses, em dois grupos pequenos. Para chegar ao Mundial, as seleções precisavam disputar apenas oito partidas naquela época, em um torneio curto, bem diferentes do atual formato classificatório sul-americano. Encaixada desde o início dos jogos, a Bolívia voou também por isso. Qual seria sua colocação se as eliminatórias fossem como as atuais, nunca saberemos. Pelo mau desempenho na Copa América (lanterna, com 2 pontinhos, em um grupo com Argentina, Colômbia e México), provavelmente teria dificuldades.

Outro fator que contribuiu para a ótima campanha era a crise técnica que viviam Brasil e Uruguai, os dois favoritos da chave. A seleção de Parreira vinha de uma Copa América medíocre, não havia se estabelecido como equipe, trazia uma enorme desconfiança após o Mundial de 1990 e não tinha Romário, tão pedido pelos torcedores. A Celeste via o ocaso da geração de Francescoli, Sanguinetti e Ruben Sosa, e iniciava ali um dos períodos mais áridos de sua história. Equador e Venezuela, os outros rivais do pentagonal, não faziam nem cócegas e eram os dois piores times de qualquer competição sul-americana que se realizasse. Havia espaço para surpreender, portanto. Um time encaixado, com a geração mais prolífica de sua história, jogando na altitude de La Paz, tinha armas suficientes para tal.

O começo da caminhada foi promissor. A Venezuela possuía um futebol rudimentar em 1993, e não passava nem perto de incomodar as grandes como nos tempos atuais. Ainda assim, a goleada por 7 a 1 era chamativa. Foi de virada: Truco tomou um frango no começo do jogo em Puerto Ordaz, mas a vitória veio ao natural e sem sustos. Neste vídeo, dá para notar claramente a fragilidade e ingenuidade do time da casa (especialmente no lance do terceiro gol), mas também podemos notar a qualidade no passe de Melgar (volante que sabia jogar), os bons arremates a média distância de Erwin Sánchez (e sua qualidade técnica, evidente no sétimo gol), a inteligência de Etcheverry e o oportunismo de Ramallo. Um começo melhor do que os próprios bolivianos esperavam.

Aí veio o histórico 25 de julho de 1993, o dia em que o Brasil perdeu sua invencibilidade nas eliminatórias. Esta sim, pode-se dizer, foi uma partida vencida por causa da altitude, e foi decisiva para a classificação da Bolívia. Um jogo relativamente equilibrado, no qual a equipe de Parreira, já sem pernas, não aguentou a pressão do time da casa e cedeu dois gols no fim, aos 43 e 45 minutos do segundo tempo - em Recife, ao nível do mar, a história foi bem diferente. Ainda assim, é bom salientar que há méritos indiscutíveis no fato ter sido a Bolívia, e não o Uruguai, o Chile ou qualquer outro país o primeiro a ter vencido a Seleção em uma eliminatória.

Nesta altura, a empolgação nacional com a seleção boliviana era incontrolável. A equipe de Azkargorta folgou na terceira rodada, mas duas semanas depois já estava batendo o Uruguai com autoridade em La Paz por 3 a 1, ganhando o segundo jogo seguido contra uma seleção campeã do mundo. Naquele momento, Bolívia e Equador incrivelmente lideravam a chave, e deixavam brasileiros e uruguaios de fora da Copa. Uma vitória por 1 a 0 sobre os equatorianos na última rodada do turno, em La Paz, deixaria a Bolívia com 8 pontos (eram dois por vitória), contra 4 de seus três rivais mais próximos e zero da lanterna Venezuela. Mesmo com três dos quatro jogos fora de casa no returno, era quase impossível ficar de fora da Copa.

Para aumentar o otimismo, uma atuação de gala. Na volta do returno, os 7 a 0 sobre a Venezuela marcaram o auge do time de Etcheverry. Foram basicamente apenas golaços: no primeiro, Melgar deixou Ramallo livre com um lindo toque; no segundo, o próprio Melgar marcou mostrando sua qualidade no apoio como elemento-surpresa; no terceiro, Sánchez fez nos seus costumeiros chutes de longe, mas o lance nasce em uma linda tabela em que Melgar deixa para ele de calcanhar; o quinto e o sexto são duas pinturas de Etcheverry, o craque daquelas eliminatórias ao lado de Valderrama; e o sétimo é uma linda jogada coletiva, de um time muito bem treinado e afinado. Vale a pena ver o vídeo.

A Bolívia, pasmem, chegou no mínimo sem ser franco-atiradora para a partida contra o Brasil em Recife. Mas, muito mobilizado e precisando mais da vitória, o time de Parreira mostrou sua maior capacidade e aplicou 6 a 0 sem piedade, lembrando que era ele, Brasil, que seria o protagonista, ora bolas. A pressão da torcida no Arruda e o gol cedo, seguido de outro, e mais outro, acabaram com a Bolívia naquela tarde. A seleção boliviana, porém, mantinha a liderança, e só a perderia na rodada seguinte, para o Brasil, no saldo. Um empatezinho com o Uruguai no Centenario praticamente classificaria a equipe para o Mundial dos Estados Unidos. A Bolívia foi valente, perdeu por apenas 2 a 1 (vejam que Erwin Sánchez pegava bem na bola mesmo ao nivel do mar), e chegou à rodada derradeira com os mesmos 10 pontos de brasileiros e uruguaios, mas saldo inferior aos canarinhos (14 a 10), e superior aos celestes (10 a 5). Um empate com o eliminado Equador em Quito levaria a equipe à Copa de forma matemática. Foi o que aconteceu: Ramallo abriu o placar no primeiro tempo, o Equador empatou no finzinho, mas o 1 a 1 levou a Bolívia à Copa. A festa ao fim do jogo foi como a de um título. A recepção em La Paz, histórica.

É uma pena que a geração de Etcheverry não tenha conseguido fazer nos Estados Unidos o mesmo que nas eliminatórias. A Bolívia teve a honra de abrir a Copa em Chicago contra a então campeã Alemanha. Cedeu a derrota caro, por 1 a 0, em falha de Truco que deixou a Klinsmann o gol aberto. Naquele jogo, Etcheverry foi expulso, e não pôde mais jogar o Mundial. Sem ele, a equipe fez com a Coreia do Sul um dos piores jogos da Copa de 1994 (0 a 0) e perdeu para a Espanha de Caminero (o verdadeiro maior jogador da história espanhola) ao natural por 3 a 1, sendo eliminada na primeira fase. Ainda assim, fez história: o pontinho obtido diante dos coreanos em Dallas foi o primeiro (e até hoje único) da história da Bolívia numa Copa do Mundo. Contra a Espanha, o primeiro e único gol em Copas até hoje.

A altitude ajudou? Sim. Mas ajudou a todas as seleções bolivianas sempre. Por que, então, só a de 1993 conseguiu aproveitá-la a ponto de rivalizar com Brasil e Uruguai cabeça a cabeça durante todas as eliminatórias? Porque era um time que jogava bola. Pode ter ido mal na Copa, pode ter sido goleado ao nível do mar pelo Brasil, pode não ter repetido esse bom desempenho na Copa América de 1995. Mas fez história. E por ter feito história, marcou um ou outro maluco por aí, aqui no Brasil. Ou será que eu sou o único?

POR ONDE ANDAM OS HERÓIS DE 1993
Carlos Truco: jogou até o ano 2000. Teve uma curta carreira de treinador que foi até 2003, passando por três times mexicanos e pela própria seleção boliviana. Tem hoje 57 anos.

Carlos Fernando Borja: um dos mais experientes daquela equipe, jogou apenas no Bolívar, de 1977 a 1997 (enfrentou o Grêmio nos dois jogos entre os dois clubes na Libertadores de 1983). Hoje, com 53 anos, é deputado.

Marco Sandy: tinha apenas 22 anos em 1993 (hoje tem 43). Jogou até 2006 e hoje é técnico da seleção sub-20 boliviana.

Gustavo Quinteros: assim como Truco, é nascido na Argentina. Jogou até 1999 e virou técnico em 2003, treinando equipes como San Lorenzo, Blooming, Bolívar e a seleção boliviana, entre 2010 e 2012. Tem 49 anos.

Miguel Rimba: hoje com 47 anos. Jogou até 2003 e foi um dos mais frequentes jogadores da seleção (80 partidas pela Bolívia entre 1989 e 2000).

Luis Cristaldo: também argentino de nascimento, tem hoje 45 anos e é o campeão de jogos pela seleção (93). Teve uma curta passagem como técnico do Guabirá em 2012, mas não vingou na profissão, ao menos por enquanto.

José Milton Melgar: outro que enfrentou o Grêmio em 1983, mas pelo Blooming, clube o qual defendeu entre 1979 e 1985. Encerrou a carreira em 1997 e desde então trabalha em projetos ligados ao esporte como fator de inclusão social, através de escolinhas. Completa hoje, 20 de setembro, 60 anos de idade.

Erwin Sánchez: aos 44 anos, ainda é o único homem a marcar um gol pela Bolívia em Copas do Mundo. Encerrou a carreira em 2006 e hoje é técnico (já trabalhou no português Boavista, na seleção e no Oriente Petrolero).

Júlio César Baldivieso: tem 42 anos e é um dos principais técnicos atualmente do futebol boliviano. Comanda o Jorge Wilstermann.

Marco Etcheverry: completa 43 anos na sexta-feira que vem. O craque do time de 1993 foi um dos pioneiros a atuar no futebol de clubes dos Estados Unidos, indo em 1996 para o DC United. Ganhou em 1997 o título de cidadão emérito de La Paz e tentou virar em técnico em 2009, sem sucesso.

Luis Ramallo: encerrou a carreira em 1997 como um dos maiores goleadores da história do Campeonato Boliviano. Aos 53 anos, é pai de Rodrigo Ramallo, atacante de 23 anos que hoje defende o Strongest.

Agradecimento especial ao amigo Felipe Prestes, também admirador daquela equipe de 1993, pelas dicas e informações adicionais.

Comentários

Rodrigo Cardia disse…
O vídeo do Bolívia 2 x 0 Brasil lembra outro episódio marcante daquela época: que o Zetti foi pego no antidoping (mais tarde absolvido) por causa de um chá de coca.

Na semana seguinte tivemos rodada de nosso campeonato de botão, e um dos meus amigos jogava com o São Paulo (Zetti no gol), e de gozação oferecemos um chá pro cara... :P
Vicente Fonseca disse…
Hahahah. Bem lembrado. Eliminatórias míticas!