A dentada, o imprevisível e além

Luisito Suárez nos fascina. É uma figura fácil de amar, especialmente se você é uruguaio ou simpatiza com o Uruguai: jogador de futebol de altíssimo nível, máquina de fazer gols, foi responsável direto pela incrível campanha uruguaia em 2010 e tem sido muito importante também agora, em 2014 - mesmo voltando de séria lesão. É igualmente fácil odiá-lo, porém: várias de suas ações são eticamente questionáveis, já levou gancho violento por xingamentos racistas dentro do campo e parece ter uma certa predileção por agredir adversários a dentadas, como o recente caso envolvendo o italiano Chiellini deixa mais do que claro. Luisito Suárez no fascina justamente por isso - por ser uma figura difícil de defender com entusiasmo e ao mesmo tempo difícil de condenar completamente. Adoramos resumir pessoas, e Suárez é um cidadão difícil de resumir. São esses os jogadores de futebol mais fascinantes: os cheios de nuances, de pontos cinzentos, incertezas. Muito, muito humanos.

É difícil para nós dizer com clareza o que achamos que deve ser feito de Suárez, depois de enfiar os dentes no oponente italiano durante a partida que garantiu os uruguaios nas oitavas da Copa do Mundo no Brasil - incidente que, diga-se, é o terceiro de igual natureza na carreira do atacante. O prejuízo aos italianos é evidente e inquestionável - afinal, só um torcedor uruguaio muito apaixonado vai pensar que Suárez não deveria ser expulso pelo acontecido. Precisa ser reparado de alguma forma. E esta forma é o gancho, talvez uma multa - algo que, de qualquer modo, vai retirar o atleta de boa parte da Copa, talvez da Copa inteira. Para muitos, contudo, essa ideia é desagradável, injusta até. Porque priva o Uruguai (e a Copa) de um de seus principais craques. E porque, segundo algumas dessas pessoas, pune o imprevisível, tenta transformar o futebol num esporte moralista, num desfile de bons moços, num esporte de convento. Aplicar gancho severo em Suárez é, para esses críticos, ferir de morte o aspecto irresponsável e até mesmo imoral que é parte da alma do futebol.

Essa discussão é profundamente humana. E me fascina muito.

Pessoalmente, penso que Suárez deve ser punido - com firmeza sim, mas sem excessos de quem quer "dar exemplo" ou qualquer coisa do tipo. Me preocupa essa apologia do craque irresponsável e sem limites, essa quase idolatria do mau-caratismo à moda latinoamérica. Embora não seja um monstro, Luisito Suárez não é um herói - porque não pode ser herói quem esbraveja que "não fala com negros", não é herói quem agride outras pessoas a dentadas apenas para triunfar num lance de futebol, nem mesmo é herói quem enfia a mão na bola para salvar um gol certo do adversário no apagar das luzes de uma partida decisiva, como ele fez contra Gana em 2010. São gestos de diferentes dimensões, com diferentes consequências e diferentes graus de condenação - todos muito humanos. Nenhum traz em si, porém, qualquer grau de transcendência, na falta de palavra melhor. Nada aponta para uma humanidade além do ordinário. E tudo bem: a humanidade não precisa ser transcendente. Mas também não precisa glorificar o que é raso, o que a mantém na mesma ou mesmo o que a faz menor.

Suárez não precisa ser arrastado pelas ruas como um bandido, como alguém que merece ódio das multidões. Mas também não penso que seja símbolo de nada que mereça ser glorificado ou resgatado na humanidade. Agredir alguém não é legal, não é bonito, não merece elogio ou aplausos. E uma classificação no futebol não justifica todas as coisas, menos ainda as que envolvem agressão direta a outro ser humano. Dizer que Chiellini é chorão ou dedo-duro é querer enxergar no futebol uma válvula de escape para a necessidade humana de banditismo - que é sim uma necessidade, tanto quanto a nobreza, por exemplo. É dizer danem-se os bons moços, danem-se as regras, queremos um pouco de irresponsabilidade e loucura para pintar algumas cores nesse cinza insuportável onde nada acontece. Nenhum problema existe em dizer essas coisas todas: o futebol é alegoria de tantas coisas, natural que seja deste aspecto também. É parte do que, para mim, faz do futebol o mais humano dos esportes. Mas cabe perguntar se é assim que queremos representar um mundo menos opressivo, menos preso a regras cada vez mais absurdas e impossíveis de cumprir: com um atleta que agride a dentadas um jogador adversário. Será um bom símbolo, esse?

Não penso que seja.

Gancho para Suárez. Que fique fora de toda a Copa, se for o caso. Não são as regras que saem glorificadas neste caso, não são as paredes cinzentas que triunfam sobre o humano além do óbvio: é a nossa vontade coletiva de sermos um pouco mais do que já somos. O gesto de Suárez, e o próprio Suárez em última análise, nos mostra onde estamos - capazes do sublime e do repugnante, pelos mesmos motivos e na mesma intensidade. É o que o futebol é, e ele só é assim porque assim somos nós. Que a dentada de Suárez seja símbolo de que também podemos ser um pouquinho mais que isso.

Comentários

Rodrigo disse…
Concordo integralmente com a ideia central do texto.

Mas me parece que nesse caso específico estamos focando demais na forma da agressão, o que até certo ponto é compreensível, pelo que ela possui de inusitado, incomum. Não é todos os dias que vemos um jogador morder outro.

Entretanto, fico me questionando: será que uma mordida é mais grave que uma cotovelada? É realmente uma atitude mais antidesportiva do que uma simulação de pênalti, por exemplo? Talvez eu esteja equivocado, mas a meu ver são situações equivalentes. Que deveriam ser repudiadas com a mesma veemência.

Infelizmente nos acostumamos com muitas práticas lamentáveis dentro do futebol, que acabaram se tornando corriqueiras e quase não geram indignação. A não ser, é claro, quando prejudicam o nosso clube.

E, de repente, a mordida do Suarez é tratada como a coisa mais absurda do mundo, só porque a forma de ele agredir o adversário é inusual. Se tivesse dado uma cotovelada, seria provavelmente expulso e não geraria discussão nenhuma. E dificilmente receberia uma punição tão dura.

Não consigo acreditar que uma punição desproporcional como essa seja construtiva para o futebol. Porque, enquanto isso, muitos outros Freds continuarão simulando pênaltis, enganando as arbitragens e interferindo diretamente nos resultados das partidas, sem gerarem a mesma comoção de uma mordida.
Chico disse…
Ótimo texto. Parabéns.

Prejuízo irreparável para o Uruguay e para a Copa do Mundo.
Franke disse…
Parabéns pelo texto.

Ontem, comentava-se que um dos argumentos a favor de uma pena duríssima para Suárez recaía na natureza da agressão: dentada não é lance de futebol, ao passe que uma entrada mais dura, por exemplo, é. Não constituindo lance normal da disputa de jogo, portanto, configurava "algo mais", e portanto merecia punição severa.

Eu concordo com esse ponto de vista, mas ao mesmo tempo ele me leva a uma conclusão exatamente contrária.

Em parte, a essência da punição - seja ela pelo árbitro ou por um comitê disciplinar - tem a função de impedir determinado comportamento que não condiz com as regras do futebol. Contudo, partindo desse princípio, eu tendo a concluir, justamente, que um lance ilegal mas considerado normal para o contexto do futebol, como uma entrada mais dura de sola, mereceria igualmente uma punição severíssima, justamente porque ele é algo comum de ocorrer.

Em suma: punir o Suárez pela dentada não configura uma punição exemplar, porque não é por causa dele, caso não fosse punido, que haveria uma epidemia de mordidas em campo. Punição exemplar, se é que isso é possível, tem que ser contra lances que têm chance real de serem repetidos pelos outros, como soladas e cotoveladas.
Vicente Fonseca disse…
Em suma: punir o Suárez pela dentada não configura uma punição exemplar, porque não é por causa dele, caso não fosse punido, que haveria uma epidemia de mordidas em campo. Punição exemplar, se é que isso é possível, tem que ser contra lances que têm chance real de serem repetidos pelos outros, como soladas e cotoveladas.

Assino embaixo!

Em resumo: punir o Suárez é justo; puni-lo com nove jogos e 4 meses de suspensão é abusivo, um absurdo. O Igor escreveu o texto antes de sair o veredicto, e sei que concorda que a pena foi excessiva. Uma pena para Suárez, para o Uruguai e para a Copa.