O dia em que o patriota esqueceu da nação

Criticar Galvão Bueno é um lugar-comum do jornalismo esportivo. Malhar a Rede Globo, então, é algo que se faz desde que ela existe. Por isso, evito fazê-los. Mas agora é chegado o momento de fazer uma crítica inevitável, justamente porque o motivo foge do padrão. Costumamos falar mal do patriotismo exacerbado de Galvão nas transmissões: o time brasileiro é sempre melhor, o time estrangeiro não é tudo isso, as equipes de outros países na Libertadores só sabem catimbar e bater, o árbitro é sempre ruim se prejudica o time brasileiro, e por aí vai. Ontem, Galvão Bueno largou seu nacionalismo de mão e caiu no extremo oposto.

Tudo por causa de Neymar. Nem vou falar do fato de a Globo ter mandado equipe completa e titularíssima para o Camp Nou acompanhar o amistoso entre Barcelona e Santos. Acho sempre muito bom, e algo que qualifica qualquer transmissão, a equipe de jornalismo esportivo estar presente no jogo, seja ele onde for. Mas essa medida não foi adotada por conta do jogo, que nem tinha importância competitiva, muito menos pelo Santos. Tudo se voltava para Neymar. Ele era o motivo do deslocamento, e o fato de ter ficado no banco de reservas no primeiro tempo causou indisfarçável apreensão na transmissão. Não duvido que sobrasse para o argentino Tata Martino se ele entrasse em campo.

Falar a respeito da idolatria de Neymar não nos cabe aqui. Rende trabalho de conclusão de curso, dissertação de mestrado, tese de doutorado. Ele é um fenômeno midiático incomparável na história do esporte brasileiro. Após a participação espetacular na Copa das Confederações, e com a proximidade da Copa do Mundo, só crescerá. Para ter embasamento maior sobre o tema, seria necessário fazer uma análise quantitativa e qualitativa sobre suas aparições na mídia. Porém, com uma boa dose de certeza, ele aparece ao menos duas ou três vezes por semana nos principais telejornais da Rede Globo, fora anúncios publicitários e incontáveis reportagens na internet. Eu, particularmente, ando bem cansado de sua imagem. Só não me canso mais porque ele realmente é muito carismático.

O fato é que ontem ficou provado que Neymar está, ao menos para Galvão Bueno, muito acima do futebol brasileiro. Porque enquanto os comentaristas Caio e Casagrande se mostravam visivelmente constrangidos com a goleada que levava o Santos, e até esboçando uma justificável indignação diante da vexatória atuação do Peixe na Catalunha, Galvão simplesmente esqueceu que se tratava de um clube brasileiro e começou a torcer sem qualquer tipo de culpa na consciência para o Barcelona. Com direito a um "pra cima deles, Neymar", quando o ponteiro do Barça partia para cima da zaga, como se Edu Dracena fosse um zagueiro argentino, alemão, italiano, russo ou sueco. Chegou a cometer o disparate de dizer que os próprios santistas queriam que Neymar fizesse gol contra o Peixe. O exagero não tem limites. É quase como se alguém fosse do mal por não querer o seu sucesso.

Há duas justificativas prontas que seus defensores utilizarão para explicar essa atitude do narrador. A primeira, bem plausível, é a de que Neymar é o principal craque brasileiro da atualidade e sua afirmação no futebol europeu seria ótima inclusive para a seleção, fora o fato de ser para o próprio Neymar em pessoa. Tudo certo, tudo bonito, mas Neymar só se afirmará na Europa conquistando títulos, fazendo gols e desempenhando grandes atuações em jogos contra pesos-pesados, como Real Madrid, Bayern München, Chelsea, Manchester United, Juventus e por aí vai, e não num amistoso contra o fragilizado Santos, com 8 a 0 no placar.

A outra é a de que o Barcelona é um time que joga o futebol genuinamente brasileiro, como há décadas não vemos. Neste caso, Galvão estaria ainda assim sendo patriótico, mas às avessas. Afinal, trata-se de uma grande falácia. Pensando bem, é o conto de fadas perfeito: o Pelé dos nossos tempos reencontra o time de 1970 dos nossos tempos e o mundo do futebol fica mais feliz com esse reencontro. Ora, o Barça em quase nada se parece com o Brasil de 1970, a não ser pela excelência técnica. É um time muito mais próximo da Holanda de 1974, se tivéssemos que fazer uma comparação com alguma seleção histórica. Na América do Sul, joga muito mais próximo do futebol argentino mais técnico, do toco y me voy, de toques rápidos, que tem em César Menotti seu grande pensador, do que o brasileiro clássico, que historicamente parte mais para lances individuais brilhantes. Não é coincidência que muitos holandeses já tenham treinado o Barça. E talvez não seja coincidência que Tata Martino, seu atual técnico, seja argentino e menotista.

O exagero em torno de Neymar chega num ponto tão extremo que, mesmo ele sendo brilhante, produza lances de genialidade quase que ininterruptamente há três anos, tenha levado a seleção ao título da Copa das Confederações com atuações espetaculares, ainda assim é possível ver tudo o que gira em torno dele exatamente assim: um exagero. É um caso a ser estudado. Jamais pensei que alguém, sozinho, pudesse fazer Galvão Bueno torcer contra um time brasileiro, chegando a ponto de desrespeitar a própria torcida do Santos, lamentando que Neymar não tivesse feito um gol no Peixe ontem à noite. Se bem que, na verdade, desrespeito mesmo com a torcida santista é ter um time como esse atual representando o clube mundialmente. Até o Taiti tocou flauta.

Comentários

Zezinho disse…
Bah, profesor, fantástico.

Eu não pude acompanhar o jogo, mas vi os gols depois. A narração era em ritmo de amistoso até que Neymar entrou. Num dos gols do Fabregas, em que o Neymar dá a assistência - normal, diga-se -, Galvão tem orgasmos, narra loucamente.

Volta e meia eu acesso o Globo Esporte, que é um site ótimo por abranger todos os esportes e todos os estados do Brasil, mas é brabo ver que o Neymar tem matéria de capa toda hora e uma seção só pra ele. Claro que o retorno financeiro é absurdo, a ponto da Globo transmitir um amistoso no meio da tarde, só que tem meter um pouco o pé no freio.

Não sei analisar a goleada em si, mas sei que foi um senhor fiasco. Pelamor
Vicente Fonseca disse…
Valeu, cara.

Nem tem muito porque analisar a goleada. Infelizmente, muito vai se falar que os times brasileiros são horríveis e incomparáveis com os europeus, o que é uma mentira. Acho que nem o Náutico levaria 8 a 0. O Santos é que foi catastrófico, não dá para tomar como parâmetro.
Franke disse…
Professor, achei teu texto muito bom, mas peço a intromissão para dialeticamente discordar inteiramente dele, ao mesmo tempo que concordando.

Para mim, o Galvão seguiu ontem seu idiossincrático patriotismo, que é não o da pátria como jogadores e pessoas, mas da pátria como entidade metafísica detentora de certas habilidades quintessenciais. É um patriotismo místico, em torno da pátria do futebol arte, e que - não poderia ser diferente - gira em torno de ídolos. Torcer pelo Barcelona de Neymar e dO BRASILEIRO ALEXIS (que nada tem de brasileiro fora a nascença) é torcer pela nação imaginária do futebol que é o Brasil de Galvão Bueno, protagonista da jornada narrativa mais catastrófica de que tenho recordo.

De minha parte, começou o jogo comigo dedicado a torcer pelo Santos, mas fui fraco e cedo sucumbi. Que atuação lamentável. Será que is dirigentes e homens-do-futebol do Peixe não aprenderam ABSOLUTAMENTE COISA ALGUMA com a derrota pro famigerado Barça em 2011?
Vicente Fonseca disse…
Eu também dialeticamente discordo de parte do que eu próprio escrevi (bota dialética nisso!). Foi o que expliquei no penúltimo parágrafo: o patriotismo às avessas, baseado na falácia de que o Barcelona = futebol-arte = Brasil. Seguindo esse patriotismo místico que tu bem coloca, ele conseguiu secar o time brasileiro que estava em campo.