Moleque travesso, Mooca querida


Foto: André Schröder

Caso o nobre leitor/a não saiba, existe uma batalha em andamento no futebol. Um confronto em todos os níveis, que opõe o modelo empresarial de parcerias, marketing intenso e salários milionarios ao esquema mais simples e humilde dos pequenos clubes locais, onde os recursos são escassos mas o futebol continua próximo do torcedor, a poucos centímetros do alambrado. "Ódio eterno ao futebol moderno", gritam torcedores do Juventus da Mooca, bastião do espírito amador em meio ao profissionalismo paulistano, e poucas vezes o grito foi tão justo e teve tanto valor simbólico. Enquanto os multimilionários Milan e Barcelona empatavam sem gols em modorrenta partida transmitida pela TV aberta, Juventus e Taboão da Serra promoviam um espetáculo de futebol, válido pela 17ª rodada da Série A3 do Paulistão, com o Moleque Travesso ganhando de 4 a 3 - partida onde esteve perdendo de 3 a 1 já no segundo tempo e, com um homem a menos, conseguiu a virada nos descontos finais.

Dizer que a sensação de entrar no Conde Rodolfo Crespi é a de uma viagem no tempo, além de clichê, seria inadequado. Trata-se, muito mais do que isso, de um retorno ao caráter mais simples e básico do futebol. O Clube Atlético Juventus é um representante clássico dos quase esquecidos times de bairro, e sua ligação com a Mooca é intensa e escancarada. Nos cânticos da torcida organizada Setor 2, não faltam citações explícitas à "Mooca querida", enquanto várias outras pessoas, claramente saídas do trabalho nas redondezas, trocavam ternos e camisas sociais pelo uniforme grená no pequeno estacionamento do clube. O público (cerca de 350 pessoas) pode ser considerado excelente para uma partida às 15h de uma quarta-feira, e era altamente identificado com o clube, com camisetas do Juventus para todos os lados. Óbvio que muitos senhores de cabelos brancos estavam lá, mas a quantidade de adolescentes e jovens adultos, além de várias mulheres, era bastante chamativa também. Uma comunidade irmanada com seu clube, algo realmente bonito de se ver.

Foto: André Schröder
O jogo era importante para os dois clubes. O Taboão da Serra, lanterna e afundado na zona de rebaixamento para a Série B do Paulista (equivalente a uma quarta divisão estadual), precisava vencer para ainda manter uma tênue esperança de escapar. O Moleque Travesso, por seu turno, vinha de boa vitória fora de casa contra o São Bento, voltava a sonhar com a classificação para a próxima fase e a vitória era fundamental para seguir na luta por essa meta. Uma partida que tinha elementos para muita emoção - ainda que eu sinceramente confesse que não estivesse esperando tanta tensão e reviravoltas.

Depois de breves minutos onde o time da casa tinha a iniciativa, o Taboão da Serra passou a se impor e abriu o placar muito cedo, gol de Ederson aos 11mins. Não precisava ser um revés dos mais perturbadores, mas o fato é que a Juventus (que jogou de branco para não confundir com o estranho tom vermelho-alaranjado do adversário) sentiu muito o gol e praticamente parou em campo. Não apenas sofreu o segundo logo em seguida - Medeiros, aos 19mins - como deixou-se dominar claramente, sem segurar a bola no meio-campo e com reduzidas chances de gol. O lado direito de ataque, com seguidos avanços do lateral Tony, era praticamente a única válvula de escape do Moleque Travesso - que acabou dando certo no finzinho da primeira etapa, quando o zagueiro Fabão descontou em um belo cabeceio. Obviamente era um mau resultado, mas o 2 a 1 parcial parecia bem menos agourento dadas as circunstâncias do jogo, e era sensível um ar de certo alívio no modesto, mas bem cuidado, pavilhão social da Rua Javari.

Foto: André Schröder
Após pausa para um sanduíche de mortadela com coca-cola - possivelmente o mais genial lanche que já fiz em um estádio de futebol - esperava ver o Moleque Travesso muito mais agressivo em campo, pressionando, criando chances em busca da virada tão necessária. Não foi bem esse o caso: bem postado defensivamente, o Taboão da Serra conseguia conter a maioria das iniciativas do adversário e ainda atacava de vez em quando, sempre com perigo. Em uma dessas chegadas, um lance ensaiado em cobrança de falta resultou no 3 a 1, assinalado por Samuel.

Foto: André Schröder
Nesse momento, eu estava praticamente no meio da Setor 2, em meio a faixas escritas em italiano, e o clima era um misto de revolta e desolação. "Cinco anos já nessa situação", lamentava um senhor de cabelos brancos e camisa grená, contando nos dedos o período de martírio desde as quedas sucessivas para a Série A-2, em 2008, e A-3, no ano seguinte. O recém-entrado atacante Fernando era um dos principais alvos da raiva juventina, e não era para menos: em uma jornada lamentável, o cidadão errava praticamente tudo, enchendo de desespero qualquer um que tentasse torcer pelo time da casa. Tudo era tristeza e desalento até o zagueiro artilheiro Fabão, assumindo tarefas de centroavante, fazer um belo gol aos 29mins e recolocar a Juventus no jogo. Faltavam pouco mais de 15mins para tentar a virada - e nem mesmo a expulsão de um jogador juventino, que eu admito de peito aberto não ter conseguido descobrir quem era, seria capaz de deter o dono da casa na busca do resultado.

Como em todas as histórias de redenção às quais tão bem se presta o futebol, coube ao contestado Fernando fazer o gol de empate, aos 35mins do segundo tempo. Única coisa de útil que fez, diga-se - chegou a perder um dos gols mais feitos que já vi, logo depois do empate, quando deixou de esticar o pé na pequena área, em uma bola lenta e facilmente alcançável. Mas fez o gol, e não é isso que se espera do atacante no fim das contas? Outra chance de ouro foi desperdiçada a seguir, quando o lateral direito Tony optou por pretextar pênalti em um lance veloz onde tinha boas condições para o chute. Preocupados, os jogadores do Taboão da Serra tentavam também as suas investidas, posto que o empate praticamente selava o rebaixamento.

Foto: André Schröder
Com a proximidade do fim do jogo, os fiéis torcedores da Mooca apelavam para a calculadora, tentando ver até que ponto era possível sonhar com uma vaga na fase final caso o empate se mantivesse. E foi já nos descontos, com o dramatismo dos grandes jogos, que a virada se concretizou: após boa aparada de cabeça de Thiaguinho (que entrou ainda no primeiro tempo e teve boa atuação ofensiva), Saulo surgiu da entrada da área e deu um chutaço, no ângulo. Loucura nas arquibancadas. Torcedores subiam no alambrado ensandecidos. Alguns choravam. Outros corriam atrás dos jogadores, acompahando-os do lado de fora do gramado enquanto os atletas comemoravam o gol salvador. Uma explosão emotiva comum a todos os estádios, mesmo os mais luxuosos e badalados - mas que na humilde Rua Javari, na belamente provinciana Mooca, ganhava uma amplitude própria e uma importância toda especial.

Terminou feliz a tarde no Conde Rodolfo Crespi, encravado no coração da região sudeste de São Paulo. Não apenas pela espetacular virada, nem somente pela festa emocionada no fim do jogo, onde atletas e torcedores comemoraram junto ao alambrado. A sensação nítida era de termos testemunhado a vitória não apenas de um clube, mas do esporte como um todo. Tenho buscado com cada vez mais afinco esse reencontro, essa bela sensação de recuperar o entusiasmo e o fascínio com o futebol. E poucas vezes saí mais contente de um estádio do que nesta tarde paulistana de céu cinzento e chuva fina. Vivo na luta pelo retorno à segunda divisão paulista, o Clube Atlético Juventus também contribui para a permanência da identidade local, do futebol sem fortunas, do moleque que vai ao alambrado e acusa o bandeirinha de dar marcha ré no kibe. Não que Milan x Barcelona seja um jogo desprovido de encanto e espírito, muito longe disso - mas podemos dizer, sem medo de errar, que pelo menos na tarde de quarta-feira o futebol moderno perdeu de goleada.

Foto: André Schröder

Comentários

Paulo disse…
eu fui a este jogo e quero recomendar um video que tem na internet com os gols do juventus na partida.

Abraços e grande texto, emocionante.

http://www.youtube.com/watch?v=L95-ubE3psc
Lucem Ferre disse…
Parabéns, texto muito bem escrito.

Só um adendo. O correto é JUVENTINO e não Juventudino.

E outra coisa, poderia ter falado mais da torcida já que assistiu o jogo junto ao Setor 2. Quando tomamos o 3 gol cantamos com tamanho entusiasmo que parecia que venciamos a peleja !

Saudações Juventinas. Hasta !
Igor Natusch disse…
Valeu pelo toque, Lagartixa. Acho que acabei fazendo uma associação meio inconsciente com o Juventude aqui do RS e acabei inventando esse "juventudino" aí. Peço desculpas e vamos arrumar ali.

Quanto ao Setor 2, fiquei positivamente impressionado mesmo. Torcida muito fiel e bastante dedicada - os cânticos são os melhores, originais e incentivando o próprio clube, sem essas frescuras de ficar mais xingando os outros do que apoiando o próprio time. Estão MUITO de parabéns!

Paulo, baita vídeo! Obrigado pelo link, rapaz =)
Lucem Ferre disse…
Imagina, nun tem que pedir desculpas não. O texto ta muito bem escrito, é só corrigir esse errinho ai e já era.

E deixa eu te perguntar, vc nun tirou mais nenhuma foto do Setor 2 ?
Igor Natusch disse…
Cara, vou ver com o André Schröder, que fez as fotos da matéria, se ele ainda tem mais algumas guardadas. Ele postou algumas outras no flickr dele, que não entraram no texto: http://www.flickr.com/photos/ampliando/sets/72157629690619031/detail/ Se houver mais imagens do Setor 2, te aviso com certeza! Valeu pelos elogios, rapaz =)
Sergio Agarelli disse…
Só duas palavras: Muito obrigado.
Breno disse…
Mais um belíssimo texto para aqueles que perguntam "Qual a graça de torcer pro Juventus?"
Anônimo disse…
clap, clap, clap, clap

ODIO ETERNO AO FUTEBOL MODERNO!

FORZA JUVE!