Breve relato sobre um cusco anilado


Foto: Maurício Klaser

Tem um cusco que frequenta os jogos do Novo Hamburgo no Estádio do Vale. Trata-se de um vira-lata meio magrela, branco com a cara preta, que anda a sacudir a cola de forma descompassada e com a cabeça baixa, como quem está sempre a farejar alguma coisa no chão. Até onde sei, não tem nome - talvez alguém o tenha batizado em algum momento, mas o nome escolhido, seja qual tenha sido, não se perpetuou. Pelo que pude ver, todos o tratam apenas pelo seu minimo denominador comum de cão, com o ressalva importante de que não se trata de um cachorro comum: é um cachorro que torce pelo Nóia, fiel ao Esporte Clube Novo Hamburgo como talvez fosse apenas a seu dono, caso tivesse um.

Conheci o cusco anilado nesta quarta-feira, enquanto tomava uma cerveja antes da decisão entre Novo Hamburgo e Caxias. Surgiu de lugar nenhum, andando em meio aos que me acompanhavam no pré-jogo como quem buscasse algo interessante junto ao meio-fio. Sou apreciador confesso de cães, e tentei fazer uma breve festa para o ensimesmado vira-lata. Inútil: sem me dar a mínima atenção, seguiu seu caminho de forma errática, preocupado com a muito mais urgente tarefa de dar uma tapeada na fome. Até ali, julgava eu que fosse um cachorro de rua como tantos outros, até que me disseram que era um cusco que torcia para o Nóia. E não apenas de longe: dava um jeito de entrar no estádio, caminhando pelas arquibancadas enquanto o anilado fizesse seu jogo no gramado do Vale. Não tivesse visto a foto, essa mesma que ilustra o texto, creio que não teria acreditado.

Fiquei imaginando, dali para frente, o cusco anilado como um frequentador privilegiado das glórias e desventuras de um time do interior gaúcho. Imaginei-o andando despreocupado entre torcedores locais, engolindo restos de churrasquinhos e cachorros-quentes, talvez dando uma fuçada em algum copo de refrigerante ou lata de cerveja. Na minha mente, pude ver o cusco anilado urinando nas rodas do ônibus adversário, latindo para o time visitante na entrada em campo, ganindo baixinho quando os desaforados ousam fazer um gol contra o Novo Hamburgo. Por algum atalho desconhecido, o cão dá um jeito de entrar nas dependências do Estádio do Vale, um sócio privilegiado que não paga mensalidade nem ingresso - e fica zanzando por ali, satisfeito com a companhia de outros torcedores, acompanhando o Nóia debaixo de chuva ou de sol, de dia e à noite, no frio ou no calorão. Com sorte, deve levar um afago da musa do Nóia de vez em quanto, isso quando não dá um jeito de - torcedor ilustre que é - entrar no vestiário e testemunhar preleções e festas de vitória. E nos dias sem jogo, mesmo assim há muito com o que o cusco anilado se divertir quando regam o gramado, quando aparam a grama ou descarregam bebidas. Consigo, num esforço final de imaginação, ver o cãozinho correndo atrás dos jogadores durante os coletivos, a língua para fora enquanto tenta acompanhar o ritmo dos profissionais. Que vida absolutamente sensacional, a que esse cachorro deve viver.

Não tive a chance de vê-lo nas arquibancadas durante a decisão da Taça Piratini. Olhei para os lados algumas vezes, procurando-o entre os degraus de concreto úmidos de chuva, mas nem sinal do bicho. Não sei se chegou a entrar para assistir o jogo ou se preferiu ficar sozinho do lado de fora, coçando as pulgas nervosamente enquanto acompanhava os lances a partir do barulho da torcida. Deve ter percebido, ao ver os primeiros torcedores do Nóia saindo cabisbaixos do estádio, que o resultado não tinha sido bom. Imagino que, dotado da empatia de todos os cães de rua, o cusco anilado tenha ficado cabisbaixo, deitado com a cabeça entre as patas, sabendo que não haveria agrados ou restos de lanche naquela triste noite em Novo Hamburgo.

De qualquer modo, não se abalou por muito tempo, pelo jeito. Demorei para sair do estádio, retido por questões profissionais; fiquei à beira da rampa que conduz à saída, conversando com o nobre ser humano que me deu carona de Novo Hamburgo para Porto Alegre, contando os minutos que se arrastavam enquanto a chuva indecisa caía do céu. De repente, eis que surge o cusco anilado, quase aos meus pés, balançando o rabo da mesma forma errática, fuçando o piso molhado com o mesmo ar de quem espera encontrar a qualquer momento um naco de carne ou um pingo-d'ouro perdido no chão. Não chegou a ser expansivo, mas me tratou de forma ligeiramente mais simpática, erguendo brevemente a cabeça para olhar-me com ar curioso antes de descer correndo chuva adentro, como quem finalmente se decide a ir embora. Talvez tenha ido latir e ganir para os torcedores do Caxias, que deixavam o estádio comemorando o título do primeiro turno do Gauchão. Eu não duvidaria, de forma alguma.

Não parecia feliz, o cusco anilado, mas jamais se diria que era um cão alquebrado ou deprimido. Frequentador assíduo do Estádio do Vale, certamente sabe melhor do que ninguém que os altos e baixos são justamente a rotina e a graça do futebol. Aquele não era um dia de migalhas apetitosas, não era uma noite de lua cheia e de cantos de vitória para o time da casa - mas o futebol não precisa mais do que de si mesmo como justificativa, e logo a vitória volta para amainar o gosto amargo da derrota inesperada. Um dia desses ainda vejo o cusco anilado sacudir a cola alegremente nas arquibancadas, latindo cheio de excitação enquanto o Novo Hamburgo estiver dando a volta olímpica em sua própria casa. Um torcedor fiel e dedicado como ele certamente merece.

Comentários

Vicente Fonseca disse…
Sem os estaduais, não teríamos histórias como essa.
Parax disse…
Excelente texto!
Parabéns pela poética toda, que, parte fictícia ou não, traduz toda uma realidade.

Força, Noia! Dá-lhe, Noia!

www.fogoanil.blogger.com
Luciano Arnecke disse…
O nome do cusco é Nóia.
Lucas disse…
Ahh eu também vi ele por lá! Muito boa, na próxima pretendo dar um pedaço do meu cachorro quente. =] Ótimo texto!

Dalee Nóiaa!!