Pela volta da seriedade

Hernán Barcos mal iniciou sua trajetória no Palmeiras e pode já ter feito história. Ok, meu otimismo é exagerado de pensar que um atacante argentino que recém começou no Brasil pode alterar a política adotada pela maior emissora do país no modo como encara o jornalismo esportivo. Mas, ao menos, escancarou a inconformidade com que alguns atletas e boa parte do público têm recebido esta ideia de que esporte é uma palhaçada.

Esporte pode ser, sim, diversão. Ir ao estádio, rir da cara do adversário, vibrar com gols, são todas pseudoatividades de final de semana ou de horários de descanso do meio de semana para a imensa maioria dos brasileiros. Programas como o Globo Esporte de Tiago Leifert cabem, sim, mas não como o principal da principal emissora do país que se autoentitula o país do futebol. Poderia ser um programa para descontrair, ao lado de outros de esporte que o tratassem como algo mais sério.

Um jornalismo esportivo sério não significa dizer que a partida entre Corinthians e XV de Piracicaba é mais importante que um discurso da Presidente da República. Mas ele pode contribuir para o crescimento do esporte, um reconhecido fator de inclusão social. A quem serve um jornalismo esportivo palhaço, descompromissado, que trata o esporte como se fosse um programa humorístico da vida real? Seguramente, a quem tem interesse que ele seja tratado assim. A nova política esportiva da Globo, que tem em Tiago Leifert e Tadeu Schmidt seus protagonistas, esconde uma série de interesses envolvendo a emissora, a CBF e a FIFA. Não é à toa que isto ocorra antes da próxima Copa do Mundo.

Quando Tiago Leifert diz que nunca levará o esporte a sério, comete uma declaração triplamente infeliz. Primeiro, porque não leva a sério justamente o seu ganha-pão. Ele serve de porta-voz sobre um assunto que não leva a sério, imaginem. Quem o levará a sério, então? Segundo, porque presta um desserviço a milhões de pessoas que levam o esporte a sério. O esporte faz parte da rotina de milhões de pessoas, e por mais que seja uma diversão para muitas delas, é algo sério justamente por se fazer presente no dia a dia desses indivíduos. Torcedores que pagam mensalidade e ingressos aos clubes de coração, adquirem os pacotes de pay-per-view, assistem aos jogos transmitidos na própria Rede Globo, mas, principalmente aos atletas profissionais, e aí entra o terceiro ponto de porque sua declaração é infeliz: ao tratar o esporte como uma palhaçada, ele não contribui em nada para o crescimento do esporte no país.

Pelo contrário. O futebol tratado como entretenimento é um imenso retrocesso. Fortalece a ideia de que jornalistas e técnicos que estudam esquemas táticos e falam sobre isso são inventores, falsos estudiosos. Isso tudo emburrece o jornalismo esportivo - e não só o jornalismo, mas o próprio esporte. Se uma discussão a respeito de qual jogador rende mais em tal função importa a muitos torcedores, é porque ela tem importância, sim. Isso sem falar em questões que permeiam outros tecidos de interesse social, como problemas do tipo da violência urbana e da política. Tratar o futebol como palhaçada é tratar como palhaçada brigas de torcida, mortes em filas de compra de ingressos, máfias de dirigentes, e outras barbaridades. É tratar como palhaçada, já que para muitos só o dinheiro sensibiliza quanto à importância de alguma coisa, bilhões de euros, dólares ou reais.

Nenhuma destas discussões passa a realmente ter importância. O que importa é o público dar boas risadas na frente da televisão. A furada de um jogador é mais importante que tudo isso. O jornalismo esportivo como puro entretenimento tem o propósito primordial de transformar efetivamente em pão e circo algo que pode ser bem mais que isso, e já vinha sendo. Canais fechados, como Sportv, ESPN e Fox Sports deram uma profissionalização à cobertura esportiva na América Latina tal como tínhamos nos países europeus há algumas décadas. Discutem a rodada, dão ao público consumidor de esporte este retorno imediato de interesse, e ainda promovem documentários, discutem a situação de outros esportes, vão além do simples "gols da rodada". O jornalismo esportivo de entretenimento revoga tudo isso. É, como eu já disse neste mesmo texto, a legitimação um imenso retrocesso. Ele pode existir como algo complementar, tal como as charges de Caruso após uma notícia séria no jornalismo político. Dá para mostrar as furadas em uma rodada do Campeonato Mineiro, mas, antes, passem os gols do Campeonato Mineiro, por favor.

Imaginem algum estrangeiro que passou esta semana no Brasil, tomou conhecimento da polêmica e sair dizendo em seu país natal: "sabiam que um dos mais famosos jornalistas esportivos da maior TV brasileira disse que não leva o esporte a sério? E isso há dois anos da Copa do Mundo e há quatro dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro?". Certamente a resposta vai ser algo como "depois falam dos portugueses...".

Comentários

Igor Natusch disse…
É importante dizer que o futebol-palhaçada consolidou-se na Globo, especialmente, por ser um chamariz de audiência. Tudo começou com o Régis Rösing brincando de vidente ao comentar gols "em tempo real" - o que reverteu em audiência e chamou a atenção dos executivos. A ideia central de colocar Leiferts da vida no ar me parece simples: fazer com que pessoas sem interesse especial no futebol assistam o programa, aumentando a audiência e rendendo fatias mais gordas de publicidade. E isso funciona: conheço algumas pessoas que não gostam de futebol, mas assistem o futebol no Fantástico, por ex. Porque é engraçado, e o humor é um bom jeito de nivelar o público, o que qualquer Zorra Total contará a vocês com muita clareza. O público do futebol mesmo, quem realmente gosta de cobertura esportiva, assiste Sportv ou ESPN - pagando por isso, claro. E os executivos colocam mais dinheiro no bolso. Para eles, do ponto de vista estritamente comercial, é uma tática bem sucedida, e nenhum piti do Tiago Leifert fará isso mudar.

Nada disso impede, é claro, que eu critique a forma como o "modelo Leifert" vai transformando o futebol em algo estúpido e sem sentido. Especialmente porque essa tática vai tomando conta de outros veículos e mídias, resultando em uma falta de profundidade generalizada na cobertura esportiva. Acho possível perceber, até pelo nível das discussões que se vê por aí, que o futebol está mais burro nos últimos anos - um desagradável, mas visível, efeito das piadinhas com gols perdidos e montagens pretensamente "hilariantes" de emissoras de TV.
Lique disse…
boa, vicente! loco abreu e barcos dando laço.
Vicente Fonseca disse…
Tudo isso é verdade, Igor. O Tiago Leifert é muito competente no que faz. Não estou criticando ele pessoalmente, mas o estilo de jornalismo esportivo que ele representa. Se fosse um estilo que complementasse o bom jornalismo esportivo (que a própria Globo já fez em outros tempos), seria muito legal. Mas resumir o jornalismo esportivo da emissora a isso é um atraso.

Noto que o Sportv começa a tomar uma direção neste rumo também, ainda que em menor proporção, claro. Bom humor é ótimo, sempre fiz isso aqui, inclusive. Mas como um acessório, não como modus operandi principal.
Francisco Fernandes Neto disse…
Gostei do texto, Vicente. O futebol é uma coisa muito séria no Brasil. E na Europa, também. Agora, chamar esse idiotazinho de " um dos mais famosos jornalistas esportivos" é demais.
Vicente Fonseca disse…
Mas ele é um dos mais famosos, Chico. Qualquer dona de casa que vê o Fantástico sabe quem é o Tadeu Schmidt, por exemplo. Tiago Leifert tem inúmeros seguidores no Twitter. Ele é muito famoso sim, o que não significa um grande jornalismo esportivo. Na minha concepção, não é.
vine disse…
Acho que um que mantém o equilíbrio nessa questão é o Milton Leite. É extremamente profissional (exceto quando filmam ele fora da transmissão, mas aí não existe jornalista santo =), mas ainda assim faz brincadeiras e comentários engraçados durante a transmissão dos jogos. Além do mais, quando participa de programas sobre futebol no SporTv sempre é sério e com bons argumentos. Que ele sirva de exemplo...
Vicente Fonseca disse…
Também acho que ele dosa na medida certa, Vine. Boa lembrança.
Lique disse…
bom humor sempre vai bem. eu gosto de seriedade, mas igual adoro os textos do douglas no impedimento, por exemplo. é engraçado mas cheio de verdades, referências e CONTIÚDO.

também se pode fazer referências a narradores argentinos, que se puxam nos apelidos e na emoção exagerada, mas não chegam nem perto da infantilidade do leifert.
Vicente Fonseca disse…
Sempre vai bem mesmo. O Carta na Mesa não me deixa mentir.
Humor sempre existiu no jornalismo esportivo da Globo. Desde a época do Léo Batista, passando pelos intervalos dos jogos, onde pegavam um take da partida e redublavam com falas engraçadas. Voces vão se lembrar de algo parecido na época que começaram a acompanhar futebol.

Mas como o Vicente falou, esse humor tem que ser um complemento do que realmente importa: a informação e os comentários sobre o esporte. E não o contrário. Hoje, vemos o esporte descrito como humor e deixando a informação e os comentários em segundo plano. Um Palmeiras x Santos 2010, que foi um baita jogo e a primeira derrota daquele Santos vencedor (talvez o melhor que vi ao vivo) foi resumido no Armeration, uma dança de um lateral colombiano na comemoração de um gol.

Voces lembram como foi doentia a cobertura em cima disso? Durante 3 dias, só se falava do Armeration nos veículos da Globo. Até o Globoesporte.com. Não falaram sobre a estratégia do Palmeiras, ou o que o Santos apresentou de falha, ou como encarou a derrota. Nada disso. Foi só Armeration. Só.

Aí aparece um jogador como o Barcos, reclama que isso é pouco sério, diz que não vai conceder mais entrevistas e jornalista fica brabinho, dizendo que o jogador não quer falar com o torcedor. Se é pro jornalista abordar esse tipo de coisa nas mídias, eu não quero que o jogador se exponha. Se jogar o suficiente, fizer os gols e fazer minha alma de torcedor feliz, basta. Fale somente nas coletivas, quando o clube solicitar sua palavra, e pronto: o torcedor fica satisfeito.

E os jornalistas como Leifert, Baldasso e Nando Gross que vão tomar Magnopyrol...

P.S.: Recordem se dessa palhaçada já descrita aqui, há cinco anos, pelo Vicente >> http://fonsecavicente.zip.net/arch2007-01-14_2007-01-20.html#2007_01-18_13_35_14-117930615-0
Lique disse…
bem lembrado, fred. esse link resume tudo sobre entrevistas de jogadores.
Vicente Fonseca disse…
Passaram-se cinco anos e minha opinião sobre o assunto é a mesma. Valeu a lembrança, Fred.
Vicente Fonseca disse…
Aliás, fazia tempo que tu não aparecia por aqui, meu amigo. Já estava saudoso.