Sobre rações e moleques mimados

Mais uma vez, os brilhantes e artísticos meninos da Vila arranjaram um bom motivo para aparecer nas manchetes. Pena que não foi pelo bom desempenho dentro de campo - o que poderia até ter sido, já que venceram o Prudente fora de casa por 2 a 1 pelo Brasileirão e, de quebra, estão com boa vantagem sobre o Vitória para a decisão da Copa do Brasil. Mas os jovens atletas do Santos tem um talento para a confusão quase análogo ao que possuem para o futebol, e uma transmissão feita por alguns deles via Twitcam acabou abrindo espaço para mais uma demonstração de molecagem, no mau sentido.

Entre demonstrações de falta de consciência coletiva (" Não tem esse negócio de esquema tático para nós aí não") e desaforos para o ausente Robinho ("ninguém vai sentir tua falta quando for embora do Santos"), o goleiro Felipe ficou revoltado com um torcedor que o chamou de "mão de alface" e não pensou duas vezes. Encheu o peito e soltou, com a finesse e a arrogância dos que muito têm mas nada sabem: "o que eu gasto com o meu cachorro de ração é o teu salário por mês, entao não fode". Como sou um idiota e não sei aproveitar adequadamente o meu tempo, me dei ao trabalho de fazer alguns cálculos em cima dessa inusitada declaração.

Supondo que nosso chapa Felipe tem em sua casa um cachorro de grande porte - um pastor alemão, por ex - parece adequado que ele invista em pacotes grandes de ração, tipo 8kg. Um pacote desses, produzido pelas melhores marcas do mercado, sai alguma coisa em torno de R$ 40,00, talvez um pouco mais. O salário mínimo do Estado de São Paulo, estado onde Felipe tem contrato profissional, está atualmente na faixa dos R$ 560,00. Logo, caso imaginemos que o torcedor que motivou a declaração do goleiro santista ganhe o salário mínimo regional (e torcemos para que ganhe mais que isso, evidentemente) nosso herói poderá comprar 14 pacotes de ração para seu amado cãozinho - o que rende um total de 112 kgs de alimentação correta e balanceada. Mais do que o suficiente para muitas e muitas refeições.

Além de mostrar que o goleiro santista não sabe muito bem o que gasta por mês com o seu animal de estimação, essa conta apressada mostra também como é lamentável o raciocínio que produziu essa frase totalmente infeliz. Trata-se de uma arrogância típica de novo-rico: eu ganho muito mais, faço sucesso, logo sou muito mais do que os outros. A irrefletida frase de Felipe foi cometida com o único proposto de humilhar quem ousa destoar do coral dos bajuladores, dos que passam seus dias a elogiar incansavelmente os talentosos boleiros santistas. Mais do que jogadores e atletas, os meninos da Vila são estrelas. Jovens e ricos, podem ter tudo que quiserem - roupas caras, carros importados, casas espaçosas, mulheres à vontade. Podem se dar ao luxo de gastar salários mínimos inteiros comprando ração para seus cães. E os que não estão no mesmo patamar tem mais é que calar a boca - mesmo que usem parte dos seus suados e miseráveis salários para finaciar as carreiras milionárias desses talentosos e desbocados meninos.

Confesso sem reservas minha crescente antipatia contra esse time do Santos. Um time cheio de futebol, mas que anula a alegria que provoca dentro do campo com a náusea gerada pelas suas atitudes fora dele. Não tem nada de bonito em um craque que desafia o treinador, dizendo que vai ficar em campo depois de ter sido determinada sua substituição. Não tem nada de animador em alguém que incita a torcida a cantar xingamentos contra treinador e jogadores do clube rival. Não é nada alegre ver alguém aparecer na mídia para debochar do time derrotado ou para mandar os críticos calarem a boca. E xingar um torcedor usando o salário como parâmetro, por mais jovem que seja o atleta e por mais inadequada que tenha sido a crítica recebida, é coisa que merece o repúdio de qualquer um com o mínimo de bom senso. E que não deveria, em hipótese alguma, ser tratada com condescendência - embora tudo indique que, infelizmente, assim vai ser feito mais uma vez. Mais do que imaturidade e estupidez, uma declaração como a de Felipe denota uma preocupante e já intolerável falta de caráter.

Claro que uma pessoa pode aprender com o tempo, repensar atitudes, amadurecer e evoluir ao ponto de se arrepender das bobagens que cometeu. É o que acontece com todos nós, todos os dias. Mas esse triste episódio serve como preocupante sintoma do tipo de ídolos que nosso futebol está forjando. Dá uma noção bem clara da espécie de pessoa que os clubes estão produzindo quando passam a mão na cabeça de seus atletas, sob a desculpa esfarrapada de estarem "protegendo" os "meninos" de seu plantel. Protegem seus cifrões, isso sim - resguardam com gosto as toneladas de dinheiro que a qualidade desses jovens acaba somando a suas contas bancárias. E nesse caminho acabam formando seres humanos pela metade, gente sem a menor noção de dignidade e do peso de seus atos. Um bando de moleques, no pior sentido do termo. Ricos de dinheiro, mas pobres de espírito. Afinal, um alto salário no futebol permite que a gente compre toneladas de ração para nossos cães de raça, mas não é o suficiente para transformar moleques em homens.

Foto: molecada santista tocando o terror na webcam (Reprodução / Twitter)