Uma laranja mecânica e um pão na chapa, por favor

O jogo Holanda x Dinamarca, para mim, só começou por volta dos 24mins do primeiro tempo. Antes disso, eu estava preso no trânsito paulistano - encarando engarrafamento dentro de ônibus, fazendo baldeações no metrô, essas coisas. Desci na estação mais próxima do meu trabalho por volta das 8h50 da manhã, esbaforido, pensando em um lugar onde eu poderia descobrir em que pé estava o interessante embate que abriu os trabalhos do Grupo E.


Depois de alguns minutos de caminhada frenética, vejo um daqueles típicos botecos de esquina, razoavelmente vazio e com uma interessante TV LCD em uma das paredes. É nessa que eu vou, pensei - e sentei ali mesmo, no balcão, cercado pelos humildes trabalhadores que consumiam seus pingados com pão na chapa. Depois de breve reunião com minha consciência, decidi ficar por ali mesmo até o jogo acabar - ia chegar bem atrasado no serviço, mas dane-se também, esse trânsito horrível, tudo engarrafado, sabem como é. Sentei bem tranquilo, pedi uma coxinha e um pingado (afinal, estava de jejum) e comecei a assistir o jogo envolvendo Laranjas Mecânicas e Dinamáquinas.


A Dinamarca estava bastante cautelosa em campo, parecendo claramente satisfeita com uma não-derrota. O esquema era um 4-5-1 meio móvel, com Rommedahl fazendo o papel de meia-atacante e auxiliando Bendter nas iniciativas ofensivas. A Holanda, mesmo sem Robben, tocava a bola com bastante qualidade, adotando a postura de quem quer abrir o placar. Mas quem chegava mais perto era a Dinamarca, com pelo menos duas boas chances de marcar o primeiro gol em chutes de Rommedahl.


Assistindo a partida ao meu lado, um rapaz de terno e gravata deixa cair seu copo de café com leite no chão, causando razoável comoção no lugar. Pede repetidas desculpas, limpa a sujeira da calça e vai embora, como se de repente tivesse descoberto estar muito atrasado. É a deixa para o intervalo de jogo, zero a zero com a Holanda mais viva, mas sem nenhuma oportunidade maior de nenhum dos lados.


Enquanto Márcio Santos comenta na tevê algumas coisas que não consigo ouvir, um senhor muito humilde de roupas cinzas de sujeira entra no boteco e senta rapidamente do meu lado. Um de mortadela e uma 51, diz ele. Sorri para o atendente, e só consigo enxergar um solitário dente amarronzado na sua boca. Recebe generosa dose de cachaça, metade de um copo daqueles de requeijão, e toma tudo de um só gole, com a casualidade de quem há tempos ostenta mais álcool do que sangue no organismo.


O jogo mal recomeça, e a Holanda se impõe. Depois de bobeada do goleiro Sorensen, o holandês Van Persie cruzou a bola na área dinamarquesa. Confuso, Poulsen cabeceou para trás, a bola bateu nas costas de Agner e entra no canto esquerdo. A Dinamarca, que tanto contava com a defesa para neutralizar os holandeses, marca um gol contra com menos de um minuto do segundo tempo. Parecia muito claro que aquele lance colocava tudo a perder para a Dinamáquina.


Na tevê, Van Perse perdia a chance do segundo gol holandês, logo aos 6mins da segunda etapa. Na pequena mesa plástica ao lado, um homem de chinelos de dedo alimentava um bebê com uma mistura de maçã e água mineral. Conversando comigo e com um dos homens do balcão, foi contando sua história - nascidos no Ceará, ele e a esposa foram para os EUA trabalhar, e tiveram a criança cerca de um ano depois. A menina nasceu com problemas de visão, e o pai resolveu retornar para cuidar dela em SP, onde moravam alguns parentes da família. A mãe, que tinha melhor emprego, ficou por lá mesmo, e mandava dinheiro para sustentar a criança no Brasil. Imagino que vocês me perdoem por não ter visto absolutamente nada do jogo durante uns 15 minutos, dando prioridade ao corajoso pai e sua sofrida história.


Quando o jogo voltou a ser minha prioridade, vi que a Dinamarca continuava perturbada e empilhando erros defensivos. Um time que se propôs a marcar com firmeza estava prejudicado justamente no que era para ser seu ponto forte. A Holanda, por sua vez, trocava passes com grande qualidade - não chegava a ser um Carrossel, mas tinha o controle do jogo e em momento algum correu riscos. Elia entrou muito bem na Holanda, acelerando o jogo e fazendo excelentes trocas de passe com Sneijder, sem dúvida o melhor jogador em campo. Aos 36mins, Sneijder quase marcou um golaço, chute de longe que desviou na defesa e bateu no travessão.


Enquanto um mendigo de dreadlocks ganhava pão e café com leite, o cidadão da 51 voltava para mais um rabo-de-galo. Pegou umas bandeirolas de uma marca de cerveja, subiu em uma escada e foi amarrando-as na frente do boteco - devia estar fazendo algum bico, já que amanhã tem jogo da seleção brasileira e tudo o mais. Entre as duas coisas, a Holanda foi se impondo sobre a perdida Dinamarca e amadurecendo o segundo gol. Que nasceu aos 39 mins, em belo lançamento para Elia. O holandês desviou do goleiro, a bola bateu na trave e encontrou Kuyt livre e desimpedido para aplicar o golpe fatal. Placar justo, que premiava o melhor time e dava a dimensão real de sua superioridade. Poderia ter sido mais ainda - aos 43mins, Affelay tocou na saída de Sorensen e a bola só não entrou porque o dinamarquês Poulsen salvou quase em cima da linha.


De qualquer modo, a vitória holandesa estava assegurada, de modo que apenas fiquei esperando o jogo acabar enquanto degustava uma bem vinda Coca de garrafinha. Perto de mim, o homem com o bebê pediu um pão na chapa - e, ao invés de comê-lo, estendeu pela janela para o mendigo de dreadlocks, que murmurou um agradecimento antes de guardar o alimento em um saco que trazia consigo. Uma bonita imagem, eu diria. E um bom jogo de futebol, mostrando uma equipe ainda não brilhante, mas capaz de crescer e ir pelo título, sim senhor. Fui para o trabalho satisfeito, com os olhos cheios de futebol e o coração repleto de vida. E convencido, uma vez mais, de que assistir jogo em boteco é sempre uma boa ideia.


Foto: holandeses comemoram o segundo gol. Kuyt é o mais sorridente na foto (Daniel Garcia/AFP)

Comentários

Chico disse…
A Laranja Mecânica podia ter ganho por mais golos. A seleção Dinamite me decepcionou. A Holanda mostrou que pode pelear pelo título.
Vicente Fonseca disse…
Só vi os últimos 15 minutos, onde a Holanda massacrou. Mas sei que foi mais difícil do que isso.
Prestes disse…
Maior relato!!
Pati Benvenuti disse…
agora que natusch virou cronista da copa, vai pro boteco e nem mais chama os amigos :P