E que se dane 1966

Aos 38 mins do primeiro tempo do jogo de hoje em Bloemfontein, Lampard acertou um chute de primeira para criar o grande tema de resenhas e comentários mundo afora. Um chute seco, potente, que superou o bom goleiro alemão Neuer, explodiu no travessão e quicou serelepe dentro do gol germânico. Era o empate da Inglaterra, o surpreendente 2 a 2, reação rapidíssima depois de uma justa vantagem alemã. Narradores pelo mundo gritaram gol; Fabio Capello, geralmente contido, se deu ao luxo de alguns socos no ar. Alemães colocaram as mãos na cabeça, enquanto os ingleses gritavam ensandecidos a alegria do empate. Todo mundo viu o gol inglês. Todos, menos a equipe de arbitragem de Alemanha x Inglaterra, partida das oitavas de final da Copa do Mundo da África do Sul.


Mauricio Espinosa, o auxiliar, manteve sua bandeira rente ao corpo; Jorge Larrionda não chamou para si a responsabilidade e deixou o lance por isso mesmo, sem confirmar o gol. Sentado na mesinha ao lado do gramado, o quarto árbitro nada fez; até Pablo Fandino, o outro bandeirinha, ficou quietinho e não se manifestou. E assim surgiu o grande assunto da partida, a comparação fácil com 1966, a alegação de que se tivesse valido o gol a partida seria outra e por aí vai. Para o jornalismo esportivo, um banquete; para o futebol, uma pena.


Porque acreditem os que não viram (alguém não terá visto?): foi um jogaço de futebol. Alemanha e Inglaterra fizeram uma partida de enorme qualidade, digna das duas escolas de futebol que o protagonizaram, uma das melhores em uma Copa muito melhor do que a maioria dos comentaristas anda se permitindo concordar. Dito isso, o 4 a 1 dá uma boa medida da atual superioridade do time alemão, embora o English Team não seja o tipo de time que não vale a alimentação balanceada que come na concentração. Foi uma partida das mais competitivas, e que até poderia ter tido uma história diferente - sem nem precisar de mais competência da arbitragem no lance anulado, dependendo das circunstâncias.


O English Team veio disposto a apagar a má imagem de jogos anteriores e entrou em campo tocando a bola e disposto a propor as ações. Rooney, jogando um pouco mais recuado do que de costume, articulava bem com Lampard e Gerrard, e a Inglaterra até conseguiu alguma imposição nos primeiros minutos de jogo. O problema é que os ingleses não conseguiam se aproximar do gol de Neuer, e com o passar dos minutos o melhor futebol dos alemães foi se impondo naturalmente. 


A seleção alemã, meio desacreditada depois da inesperada derrota diante da Sérvia, retomou o rumo e cada vez mais se consolida como uma das principais candidatas ao título. A Alemanha joga solto, com ótimo toque de bola, aliando o pragmatismo geralmente associado a seu futebol com ímpeto juvenil e uma inegável qualidade técnica de seus jogadores. Özil e Müller são dois craques: rápidos, técnicos e precisos no passe, fazem a bola rodar com muita perícia e criatividade. A defesa cometeu alguns vacilos, especialmente por meio do surpreendentemente inseguro Mertesacker, mas de modo geral dá conta do recado com a precisão esperada de um time com a sua tradição. Lahm é lateral de rara qualidade, e Schweinsteiger foi soberano no combate do meio-campo.Cauteloso atrás, o time alemão se abre como um leque no momento do contra ataque, gerando em instantes uma série de opções para o golpe fatal. E o ataque hoje foi impiedoso, especialmente no apoio qualificadíssimo da jovem dupla de meio-atacantes e no faro de Klose. O atacante não é mais criança e nunca foi um gênio com a bola no pé, mas ainda mata um lance como poucos centroavantes no mundo podem se candidatar a fazer.


O primeiro gol alemão até contradisse um pouco essa qualidade toda, já que foi um primor de pura copeirice. Balão do goleiro Neuer, bola voando até o ataque, Klose impondo-se fisicamente a Upson e chutando de bico na saída de James. Mas era um reflexo indiscutível da superioridade alemã em campo - e que se escancarou ainda mais aos 32mins, quando uma linda jogada de pé em pé encontrou Podolski livre na esquerda para um belo chute cruzado. Na tentativa de reagir, e sentindo a má atuação de seu setor defensivo (em especial dos perdidíssimos Terry e Ashley Cole), Capello adiantou de vez os ingleses, tentando ganhar a disputa de meio de campo na base da aglomeração. E deu certo: durante cerca de dez minutos, a Inglaterra tomou as rédeas do jogo, descontou em cabeceio preciso de Upson e só não empatou o jogo menos de um minuto depois do primeiro gol porque o fraco time de arbitragem resolveu brincar de cego e não confirmou o gol de Lampard, claríssimo já no momento em que ocorreu.


A Inglaterra manteve muito do ímpeto no começo da segunda etapa, e uma falta de Lampard explodiu na trave aos 6mins, dando a pinta de que o empate poderia vir a qualquer momento. Mas os germânicos fincaram sua defesa atrás, deixaram os avantes de prontidão e mataram a partida na base do contra ataque. Foram dois belos gols de quem domina a ferramenta como poucos, ambos assinalados pela revelação Müller. O terceiro gol, aliás, foi uma pintura, empolgante troca de passes em alta velocidade entre o autor do gol e Podolski, menos consistente em outros jogos e hoje em muito boa partida.


Mais do que o placar dilatado, o que surpreende na Alemanha é a sua ampla imposição sobre um adversário dos mais tradicionais. Não é comum vermos algo assim, um confronto de grandes seleções na qual uma atropela a outra sem dar muito espaço para contestações. A Alemanha chega forte, e qualquer um que queira encará-los vai precisar tirar alguns coelhos da cartola na hora da verdade. Dito isso, a Inglaterra mostrou alguma resistência, teve o empate mal anulado e exibiu boas atuações individuais. Com mais tempo, poderia ter crescido bastante nessa Copa. O problema é que, se existe algo que um Mundial não oferece, é tempo para trocar pneus - ainda mais diante de uma seleção fortíssima, que tem força e potencial para uma corrida muito séria rumo ao título.


Daqui a pouco vocês lerão, em artigos por aí, como o gol anulado fez justiça ao crime de 1966 e tudo o mais. Talvez até já estejam lendo, na verdade. Eu pessoalmente não embarcarei nessa. Quem fez justiça foi a Alemanha, manietando o adversário e impondo-se em campo com um ótimo futebol. Segue em frente, com todo o merecimento. E os sulamericanos que se cuidem: podem estar em superioridade numérica, mas a Europa manda um representante bem forte para a batalha rumo ao título.


Fotos: Podolski vai para a festa após segundo gol; e Neuer, além da levitação, exercita dons de hipnose e convence arbitragem que a bola não entrou (AFP).

Comentários

Chico disse…
E o Panzer devastou a Inglaterra.
Vicente Fonseca disse…
Concordo integralmente. A Alemanha tem um timaço, é pura teimosia não reconhecer. Pode até não ganhar a Copa, isso é do jogo. Mas a atuação de hoje, diante de uma seleção de primeiro nível, deixa isso muito claro. A cada Copa que passa me torno mais fã dessa seleção.

E é uma pena que uma geração de craques da Inglaterra como essa se despeça de forma melancólica do English Team. Uma pena que nunca tenha conseguido um título sequer, ou ao menos confirmado dentro de campo as expectativas que se criaram fora dele.

Jogaço, o melhor da Copa. É por isso que espero a cada quatro anos. Ver um jogo desses é a realização de quem é apaixonado por futebol. Um domingo feliz, portanto. De barriga cheia. :)
Vicente Fonseca disse…
Ah, claro. Deus não joga mas fiscaliza. Nem que leve 44 anos para isso.
Prestes disse…
A Alemanha foi muito superior, mas o lance foi crucial.

Porque os outros dois gols alemães foram em contra-ataques em que a Inglaterra se jogara toda para cima.

Ainda assim, qualidade muito grande alemã para fazer os dois gols. E muita ingenuidade do experiente time inglês se jogar tanto para cima.