Roger Milla (1982/90/94)

O inusitado, o surpreendente, as dancinhas junto à bandeira de escanteio após a comemoração do gol, a simplicidade, a experiência. A seleção camaronesa foi um dos poucos temperos que a insossa Copa de 1990, na Itália, apresentou ao mundo. Foi a seleção mais emblemática e mais bem sucedida (junto com o Senegal de 2002) do continente africano na história dos Mundiais. No comando de tudo, uma figura com o carisma dos grandes líderes: Albert Roger Rooh Miller, ou Roger Milla, como ficou conhecido para o mundo.

Milla juntou-se à histórica seleção treinada pelo russo Valeri Nepomnyashchi em abril, a dois meses do início da Copa. A ideia de colocar o experiente atacante de 38 anos no grupo que rumava à Itália foi do presidente do país, Paul Byia, no cargo até hoje, desde 1982. Amigo pessoal de Milla e conhecedor de seu talento e carisma, Byia acabou ajudando a construir um time histórico para o futebol africano. Quem disse que presidentes, quando se metem em futebol, só falam besteira?

Embora Milla tenha tido seu melhor momento em Copas naquele ano, foi em 1982 que o centroavante estreou em Mundiais. Na Copa da Espanha, Camarões trouxe um aperitivo do que mostraria ao mundo oito anos depois. A seleção não poderia ter caído em chave mais difícil: o grupo da morte, com três adversários fortes e calejados. Na estreia, contra o Peru (então uma seleção forte da América do Sul), um empate sem gols com sabor de derrota: Milla teve um gol mal anulado pela arbitragem. No segundo, novo 0 a 0, desta vez com gosto de vitória – a adversária era a Polônia, que chegaria em terceiro lugar. O jogo mais histórico, porém, foi o terceiro: mais um empate, mas com a Itália, futura campeã mundial, 1 a 1. Este jogo é considerado um marco na história do futebol africano. Camarões estava fora da Copa, mas invicto. Só perdeu para o time que se sagraria tricampeão pelo número de gols marcados na primeira fase. Milla atuou nos três jogos, mas não marcou gols.


Foi na própria Itália, porém, que eles obteriam sua maior história de sucesso. Em 8 de junho de 1990, os olhos do mundo estavam voltados para o Estádio Giuseppe Meazza, em Milão, para a partida de abertura da Copa do Mundo. A Argentina, campeã mundial, tinha Maradona e todo o favoritismo contra os alegres desafiantes que trajavam verde, vermelho e amarelo. Num jogo que entrou para a história, Camarões venceu por 1 a 0 (abaixo, compacto com Galvão Bueno completamente em chamas). Milla, é verdade, foi um coadjuvante. Entrou aos 37 minutos do segundo tempo para segurar o jogo com sua experiência: Camarões, antes mesmo de abrir o placar aos 22 do segundo tempo, tivera um jogador expulso (teria outro, aos 44). Atentem, no vídeo, para a impulsão impressionante do atacante Biyik quando marcou o gol da vitória; para a falta absurdamente violenta cometida em Caniggia no finzinho do jogo; e para o indisfarçável sorriso do presidente brasileiro, Fernando Collor de Mello, após a derrota do maior rival.


No jogo seguinte, contra a Romênia, Camarões já tinha os holofotes do mundo. Os romenos haviam vencido os soviéticos por 2 a 0, de modo que era a partida das zebras e dos líderes do grupo. Jogo difícil, resolvido por Milla. Entrou aos 13 do segundo tempo e marcou os dois gols da vitória africana por 2 a 1. Notem a matreirice do centroavante no primeiro gol dele em Copas.


Classificada, a seleção camaronesa entrou desconcentrada e levou 4 a 0 da eliminada União Soviética, o que não os impediu de serem os campeões do grupo, classificados ao lado de Romênia e Argentina. Nas oitavas-de-final veio o histórico jogo contra a Colômbia. As duas seleções que haviam parado os finalistas da Copa anterior (Argentina e Alemanha) na primeira fase fizeram um duelo equilibrado, que terminou em 0 a 0. Veio, então, a prorrogação. Logo na primeira jogada do segundo tempo extra, Roger Milla recebeu, driblou o marcador com extrema categoria e pôs os africanos em vantagem. Tudo isso já serviria para torná-lo um herói nacional, mas a História estava ávida por novos capítulos naquele 23 de junho de 1990, no Estádio San Paolo de Nápoles. Dois minutos depois, Higuita tenta sair jogando e perde a bola para Milla, que conclui para o gol vazio, num lance que ficou marcado para sempre na história das bizarrices em Mundiais. Ano passado, em entrevista a jornalista português, Milla confessou que foi Valderrama quem o ensinou a roubar a bola de seu arqueiro conterrâneo, quando atuavam como companheiros de clube no Montpellier, e enfrentaram Higuita, à época no Benfica (a íntegra desta bela entrevista pode ser encontrada aqui), numa competição europeia. Camarões estava entre as oito melhores seleções do mundo, com dois gols dele. Sua dancinha, inspirada em Pelé (o Santos excursionou por Camarões nos anos 60, o que o marcou muito), ganhou as TVs e jornais do mundo inteiro.


O jogo seguinte, contra a Inglaterra, foi o melhor da Copa de 1990. E Camarões, apesar da derrota, não fez feio. Saiu perdendo no primeiro tempo, virou o jogo no segundo (participação diretíssima e genial de Milla nos dois gols) e sofreu o empate a sete minutos do fim. Na prorrogação, os ingleses fizeram o terceiro gol e se classificaram para as semifinais. Embora o mundo inteiro simpatizasse com os Leões Indomáveis, não foi injusto. Paul Gascoigne simplesmente acabou com o jogo, e o próprio Roger Milla enfatiza isso na entrevista que acabo de citar.



Em 1994, Camarões chegava aos Estados Unidos com 12 jogadores da bem sucedida campanha na Itália. Um time envelhecido, que desta vez não deu conta de passar em um novo grupo muito complicado, a exemplo das Copas anteriores. Contra a Suécia, um interessante empate em 2 a 2 deu a falsa impressão de que os Leões complicariam a vida do Brasil de Romário. Mas a seleção que seria tetracampeã fez 3 a 0, com Milla jogando os últimos 27 minutos daquele jogo. Contra a Rússia, o maior fiasco: derrota de 6 a 1, com cinco gols do atacante Salenko, um recorde. Mas Milla entrou para história mesmo assim: ao marcar o único gol de sua seleção, tornou-se o mais velho jogador a marcar um tento na história das Copas, aos 42 anos e 1 mês de idade.


Roger Milla, como se vê, tem vocação para entrar para a história. Mesmo ídolo maior de sua nação, dispensa seguranças ao andar nas ruas ou ir a eventos ligados ao futebol. Hoje com 58 anos (completados ontem), marcou cinco gols nos onze jogos que disputou em Copas. Foi o expoente máximo da primeira seleção africana reconhecida em Copas do Mundo. Se o Mundial deste ano se realizará no continente, podem ter certeza que Milla tem sua dose de importância nessa história.

Foto: o descontraído senhor das bandeiras de escanteio (Ionline).

Comentários

Lourenço disse…
Sensacional! O Milla sempre era banco em 90 por causa da condição física e da idade?
Vicente Fonseca disse…
Sim. Ele não tinha fôlego para aguentar os 90 minutos. Entrava sempre no segundo tempo, descansado, e resolvia a parada.
Igor Natusch disse…
Na época, eu nem imaginava que o Milla fosse tão velho. E é interessantíssimo isso: duvido que alguém lembre espontaneamente que ele não era titular em 1990. O nome dele se associou de tal forma aos Leões Indomáveis que ele virou sinônimo daquele time.

P.S.: O gol de Oman Biyik é impressionante. Lembro claramente de como se discutia a impulsão do homem em reportagens e matérias para TV - tem uma das comemoraçoes de gol, não recordo agora qual, que ele toma um impulso e praticamente monta nas costas do colega, assim, sem tomar apoio, só no pulo! Teria sido campeão olímpico de salto em altura, certo =P
Zezinho disse…
Uma das maiores zebras da história das Copas, Argentina 0x1 Camaraões, em 08/06/1990, tem um significado especiao para mim: foi, simplesmente, o dia em que nasci!

Há duas décadas ouço histórias relativas a esse jogo e à essa Copa. E detesto quando dizem que 'foi a pior Copa', 'Copa medíocre', 'nível técnico lamentável', 'Copa da retranca' e blablabla. Bando de incautos alegres e malemolentes! Não é à toa que jogo de volante.

Reza a lenda que o meu choro de bebê recém nascido se deu segundos após o gol de Fraçois Oman-Biyik, mas parece que há certo exagero nisso.

A camisa de Camarões que enverguei no Carta na Mesa foi presente dos meus pais pelos meus 20 anos =)

Nas Olimpíadas de 2000, torci feito louco por Camarões - inclusive no jogo contra Luxe's Boys & Dentuço Pilantra

Não estranhem se meu piá vier a se chamar Roger