O dia em que a montanha foi a Maomé
Zidane recebe a bola no centro do campo. Toca de primeira para trás, e corre. Recebe de volta a pelota na intermediária, e avança sem que os defensores alemães consigam se aproximar. Vê um companheiro se deslocando pela esquerda e lança com perfeição, entre os zagueiros, deixando-o na cara do gol. Cena fácil de imaginar, certo?
Agora imagine que estamos em 16 de junho de 1982, no Estádio El Molinón, em Gijón. O Zidane em questão veste a camisa verde – de número 14 – com calções verdes e meias vermelhas da seleção da Argélia, país africano que se tornara independente há apenas duas décadas e que jogava sua primeira partida de Copa do Mundo.
Eram sete minutos da segunda etapa. O passe perfeito vai para os pés de Lahkdar Belloumi, que domina e vê a muralha chamada Schumacher a sua frente. O chute bate em cima do goleiro alemão, mas quem pega o rebote é o atacante Rabah Madjer que, com categoria, precisa de apenas um toque na bola para desviar de dois defensores que protegiam o arco. O mundo ficava surpreso? Nem tanto, não passava de um deslize da atual vice-campeã mundial. Da Alemanha de Breitner, Rummenigge, Littbarski e Magath, que tinha tempo de sobra para virar a partida. A verdade é que os germânicos ficaram assustados. Tanto que em seguida ao gol, Zidane parte livre novamente pelo centro do campo. Em alta velocidade, dá um drible da vaca em um zagueiro, derruba outro com o ombro e encontra Assad pelo mesmo lado esquerdo, mas o jogador argelino chuta mal, por cima do gol.
É, mas os alemães iriam virar a partida mesmo. Aos 22, Magath recebe no lado esquerdo da grande área e chuta cruzado. Rummenigge só tem o trabalho de empurrar para as redes. Agora, os africanos iriam sentir a pressão. Agora, a porteira ia abrir. Ledo engano. O gol alemão é que fora um deslize argelino. Dada a saída, a bola passa de pé em pé africano até Assad partir em velocidade pelo lado esquerdo, receber, vencer facilmente Magath na corrida, invadir a área e cruzar para Belloumi, livre, marcar o segundo. Sem encostar na bola, após o gol de empate, os alemães já perdiam o jogo novamente. Agora sim, o mundo estava boquiaberto pela televisão.
Os bicampeões mundiais tinham 20 minutos para reagir, e até tiveram um gol anulado em um escanteio, mas se limitaram a alçar bolas para a área sem criatividade. Defendendo-se com qualidade, a equipe africana ainda criava melhores chances, sempre em contra-ataques rapidíssimos, e até chegou a humilhar os europeus com jogadas de efeito. O apito final causou delírio a todos os não-alemães presentes no estádio. A segunda vitória de uma seleção africana em copas – a primeira fora da Tunísia diante do México, em 78 – vergava uma das maiores potências do futebol mundial. A Alemanha Ocidental que ainda alcançaria o vice-campeonato no mesmo torneio. O êxito argelino, entretanto, não fora por acaso. O grupo sólido jogava junto desde 1979, como destacou Rabah Madjer, em 2002, à BBC. Antes de formar esta equipe, a seleção local não tinha qualquer relevância no cenário africano. Os anos oitenta foram, então, a época de ouro argelina. Em 1980, alcançaram o vice-campeonato da Copa Africana de Nações. Em 82, antes de disputar a Copa do Mundo, alcançaram as semi-finais do torneio continental, o que também conseguiriam em 84 e 88, antes de conquistarem o primeiro e único título africano, jogando em casa, em 1990, ainda com boa parte da base de 82. A mesma base que também chegaria a Copa do Mundo de 86.
A vitória sobre a Alemanha também não era por acaso, porque a equipe treinada por Mahieddine Khalef possuía um preparo físico impressionante (a velocidade absurda dos atletas é perceptível pelos vídeos dos jogos), o que, aliado à qualidade técnica, permitia aos argelinos desempenhar um contra-ataque mortal. Além disso, a seleção africana tinha com a bola um esquema agressivo e voluntarioso, com vários jogadores capazes de atacar pelos lados e pelo meio, bem como de sair jogando de trás com qualidade e de fechar os espaços para o adversário. Eram jogadores então desconhecidos fora da África. Salah Assad aparecia pela ponta-esquerda como um raio e pelo meio para concluir. Foi, de acordo com a France Football, o segundo melhor jogador africano em 1982. Após a Copa, ele sairia do RC Kouba, da Argélia, para jogar pelo FC Mulhouse, da França. Em 83, chegaria ao Paris Saint Germain. O terceiro melhor jogador da África em 82 foi Lakhdar Belloumi, que havia sido o primeiro em 1981. O atacante marcou 26 gols pela seleção argelina sendo o terceiro maior artilheiro da história do selecionado e atuou 89 vezes pela Argélia.
Quem armava para as conclusões de Belloumi era Djamel Zidane, que fazia tudo com velocidade e técnica apuradas e o único que já jogava na Europa antes da Copa (desde o final dos anos setenta), mas equipes de pouca expressão do futebol belga. Mais atrás, controlando a parte defensiva estava o capitão Ali Fergani, para quem a Argélia desempenhava um futebol “nunca visto antes” e uma “mistura dos estilos alemão, francês e latino” de jogar. Todos estes quatro jogadores são heróis nacionais, tendo participado das duas copas jogadas pela Argélia em sua história, e da conquista do único título africano, em 90.
Quem também participou de tudo isso foi o maior craque da equipe, o atacante Rabah Madjer. Jogador habilidoso, veloz e imprevisível, Madjer só se tornaria conhecido fora da África aos 12 minutos do segundo tempo da partida contra Alemanha, já que ainda jogava em seu país natal, no Hussein Dey. Em 83, Madjer iria para o futebol francês, mas o auge de sua carreira seria no Porto, onde foi campeão europeu em 87, marcando gol na final, diante do Bayern de Munique e campeão do mundo, marcando gol na prorrogação contra o Peñarol. Mas após a partida contra a Alemanha, como Salah Assad admitiria, a equipe ainda estava com a cabeça “no mundo da lua” no duelo seguinte contra a Áustria, e teve que “pagar o preço”. Mesmo deslumbrados, os argelinos começaram a partida com agressividade e obrigaram o arqueiro Koncilia a diversas defesas, até que Schachner marcasse para os europeus, aos 10 da segunda etapa, e Krankl ampliasse, aos 22. Haveria chance para recuperação na última partida da fase de grupos, contra o Chile, que havia perdido para Áustria (1 a 0), e sido goleado pela Alemanha (4 a 1). Mesmo com algumas mudanças na equipe, a Argélia não demorou a marcar diante de uma defesa comandada pelo veteraníssimo Don Elias Figueroa. Logo aos sete minutos, Assad deu lindo lançamento para Madjer na ponta-esquerda. O atacante cruzou – na verdade, um passe lúcido – para o reserva Tedj Bensaoula (22 gols pela seleção) no segundo pau, que deu um toque para trás, encontrando Assad livre para marcar, coroando linda jogada. O Chile pressionou, jogou bola na trave, mas quem marcou foi Assad, aos 31. Quatro minutos depois, Bensaoula levaria o Chile a nocaute, marcando o terceiro num belo chute rasteiro. Mas na segunda etapa, o Chile descontaria com Neira, de pênalti, e um golaço de Letelier, que em 1990 jogaria no Internacional. Eram os gols da ingenuidade argelina. Gols que não poderiam ter ocorrido, porque Alemanha e Áustria jogariam entre si depois, já sabendo o resultado e uma vitória simples da Alemanha classificaria os dois vizinhos europeus, deixando a Argélia de fora. E não é que foi exatamente este o escore do jogo? A atuação das duas equipes de fala alemã foi tão controversa que para as copas seguintes a FIFA passou a marcar as partidas da última rodada de cada grupo para o mesmo horário.
Vinte anos depois, Belloumi ainda tinha raiva do acontecimento que eliminou a seleção argelina: “Chamamos esta partida de jogo da vergonha”. Em 1986, a mesma geração conseguiu ir para a Copa novamente, mas já não teve o mesmo brilho. Conseguiu apenas um ruim empate contra a Irlanda do Norte. Até dificultou as coisas para o Brasil, mas perdeu por 1 a 0, e levou três da Espanha. Marcou apenas um gol com Zidane. Após o título africano de 90, o canto dos cisnes da geração de Madjer, o que se seguiu foi um longo inverno para os argelinos, que não conseguiram sequer ter relevância no continente. Agora, a Argélia está de volta. Os ingleses que se cuidem.
Foto: Merzekane funga no cangote de Breitner (ocampodossonhos.com); Madjer: muita estrela no Porto - e depois ainda virou jogador de futebol de areia da Seleção Portuguesa! (blogportistas.com)
Eram sete minutos da segunda etapa. O passe perfeito vai para os pés de Lahkdar Belloumi, que domina e vê a muralha chamada Schumacher a sua frente. O chute bate em cima do goleiro alemão, mas quem pega o rebote é o atacante Rabah Madjer que, com categoria, precisa de apenas um toque na bola para desviar de dois defensores que protegiam o arco. O mundo ficava surpreso? Nem tanto, não passava de um deslize da atual vice-campeã mundial. Da Alemanha de Breitner, Rummenigge, Littbarski e Magath, que tinha tempo de sobra para virar a partida. A verdade é que os germânicos ficaram assustados. Tanto que em seguida ao gol, Zidane parte livre novamente pelo centro do campo. Em alta velocidade, dá um drible da vaca em um zagueiro, derruba outro com o ombro e encontra Assad pelo mesmo lado esquerdo, mas o jogador argelino chuta mal, por cima do gol.
É, mas os alemães iriam virar a partida mesmo. Aos 22, Magath recebe no lado esquerdo da grande área e chuta cruzado. Rummenigge só tem o trabalho de empurrar para as redes. Agora, os africanos iriam sentir a pressão. Agora, a porteira ia abrir. Ledo engano. O gol alemão é que fora um deslize argelino. Dada a saída, a bola passa de pé em pé africano até Assad partir em velocidade pelo lado esquerdo, receber, vencer facilmente Magath na corrida, invadir a área e cruzar para Belloumi, livre, marcar o segundo. Sem encostar na bola, após o gol de empate, os alemães já perdiam o jogo novamente. Agora sim, o mundo estava boquiaberto pela televisão.
Os bicampeões mundiais tinham 20 minutos para reagir, e até tiveram um gol anulado em um escanteio, mas se limitaram a alçar bolas para a área sem criatividade. Defendendo-se com qualidade, a equipe africana ainda criava melhores chances, sempre em contra-ataques rapidíssimos, e até chegou a humilhar os europeus com jogadas de efeito. O apito final causou delírio a todos os não-alemães presentes no estádio. A segunda vitória de uma seleção africana em copas – a primeira fora da Tunísia diante do México, em 78 – vergava uma das maiores potências do futebol mundial. A Alemanha Ocidental que ainda alcançaria o vice-campeonato no mesmo torneio. O êxito argelino, entretanto, não fora por acaso. O grupo sólido jogava junto desde 1979, como destacou Rabah Madjer, em 2002, à BBC. Antes de formar esta equipe, a seleção local não tinha qualquer relevância no cenário africano. Os anos oitenta foram, então, a época de ouro argelina. Em 1980, alcançaram o vice-campeonato da Copa Africana de Nações. Em 82, antes de disputar a Copa do Mundo, alcançaram as semi-finais do torneio continental, o que também conseguiriam em 84 e 88, antes de conquistarem o primeiro e único título africano, jogando em casa, em 1990, ainda com boa parte da base de 82. A mesma base que também chegaria a Copa do Mundo de 86.
A vitória sobre a Alemanha também não era por acaso, porque a equipe treinada por Mahieddine Khalef possuía um preparo físico impressionante (a velocidade absurda dos atletas é perceptível pelos vídeos dos jogos), o que, aliado à qualidade técnica, permitia aos argelinos desempenhar um contra-ataque mortal. Além disso, a seleção africana tinha com a bola um esquema agressivo e voluntarioso, com vários jogadores capazes de atacar pelos lados e pelo meio, bem como de sair jogando de trás com qualidade e de fechar os espaços para o adversário. Eram jogadores então desconhecidos fora da África. Salah Assad aparecia pela ponta-esquerda como um raio e pelo meio para concluir. Foi, de acordo com a France Football, o segundo melhor jogador africano em 1982. Após a Copa, ele sairia do RC Kouba, da Argélia, para jogar pelo FC Mulhouse, da França. Em 83, chegaria ao Paris Saint Germain. O terceiro melhor jogador da África em 82 foi Lakhdar Belloumi, que havia sido o primeiro em 1981. O atacante marcou 26 gols pela seleção argelina sendo o terceiro maior artilheiro da história do selecionado e atuou 89 vezes pela Argélia.
Quem armava para as conclusões de Belloumi era Djamel Zidane, que fazia tudo com velocidade e técnica apuradas e o único que já jogava na Europa antes da Copa (desde o final dos anos setenta), mas equipes de pouca expressão do futebol belga. Mais atrás, controlando a parte defensiva estava o capitão Ali Fergani, para quem a Argélia desempenhava um futebol “nunca visto antes” e uma “mistura dos estilos alemão, francês e latino” de jogar. Todos estes quatro jogadores são heróis nacionais, tendo participado das duas copas jogadas pela Argélia em sua história, e da conquista do único título africano, em 90.
Quem também participou de tudo isso foi o maior craque da equipe, o atacante Rabah Madjer. Jogador habilidoso, veloz e imprevisível, Madjer só se tornaria conhecido fora da África aos 12 minutos do segundo tempo da partida contra Alemanha, já que ainda jogava em seu país natal, no Hussein Dey. Em 83, Madjer iria para o futebol francês, mas o auge de sua carreira seria no Porto, onde foi campeão europeu em 87, marcando gol na final, diante do Bayern de Munique e campeão do mundo, marcando gol na prorrogação contra o Peñarol. Mas após a partida contra a Alemanha, como Salah Assad admitiria, a equipe ainda estava com a cabeça “no mundo da lua” no duelo seguinte contra a Áustria, e teve que “pagar o preço”. Mesmo deslumbrados, os argelinos começaram a partida com agressividade e obrigaram o arqueiro Koncilia a diversas defesas, até que Schachner marcasse para os europeus, aos 10 da segunda etapa, e Krankl ampliasse, aos 22. Haveria chance para recuperação na última partida da fase de grupos, contra o Chile, que havia perdido para Áustria (1 a 0), e sido goleado pela Alemanha (4 a 1). Mesmo com algumas mudanças na equipe, a Argélia não demorou a marcar diante de uma defesa comandada pelo veteraníssimo Don Elias Figueroa. Logo aos sete minutos, Assad deu lindo lançamento para Madjer na ponta-esquerda. O atacante cruzou – na verdade, um passe lúcido – para o reserva Tedj Bensaoula (22 gols pela seleção) no segundo pau, que deu um toque para trás, encontrando Assad livre para marcar, coroando linda jogada. O Chile pressionou, jogou bola na trave, mas quem marcou foi Assad, aos 31. Quatro minutos depois, Bensaoula levaria o Chile a nocaute, marcando o terceiro num belo chute rasteiro. Mas na segunda etapa, o Chile descontaria com Neira, de pênalti, e um golaço de Letelier, que em 1990 jogaria no Internacional. Eram os gols da ingenuidade argelina. Gols que não poderiam ter ocorrido, porque Alemanha e Áustria jogariam entre si depois, já sabendo o resultado e uma vitória simples da Alemanha classificaria os dois vizinhos europeus, deixando a Argélia de fora. E não é que foi exatamente este o escore do jogo? A atuação das duas equipes de fala alemã foi tão controversa que para as copas seguintes a FIFA passou a marcar as partidas da última rodada de cada grupo para o mesmo horário.
Vinte anos depois, Belloumi ainda tinha raiva do acontecimento que eliminou a seleção argelina: “Chamamos esta partida de jogo da vergonha”. Em 1986, a mesma geração conseguiu ir para a Copa novamente, mas já não teve o mesmo brilho. Conseguiu apenas um ruim empate contra a Irlanda do Norte. Até dificultou as coisas para o Brasil, mas perdeu por 1 a 0, e levou três da Espanha. Marcou apenas um gol com Zidane. Após o título africano de 90, o canto dos cisnes da geração de Madjer, o que se seguiu foi um longo inverno para os argelinos, que não conseguiram sequer ter relevância no continente. Agora, a Argélia está de volta. Os ingleses que se cuidem.
Foto: Merzekane funga no cangote de Breitner (ocampodossonhos.com); Madjer: muita estrela no Porto - e depois ainda virou jogador de futebol de areia da Seleção Portuguesa! (blogportistas.com)
Comentários
Incrível como a FIFA, após a lambança de Argentina x Peru em 1978, manteve jogos em horários distintos na rodada final na Copa seguinte.
Apesar da vitória da Tunísia sobre o México, considero 1982 como o surgimento do futebol africano. Além desta vitória da Argélia sobre a Alemanha, houve ainda o empate de Camarões com a Itália.
Só uma correção: a Alemanha não era atual vice-campeã quando jogou com a Argélia. Seria vice dias depois. A detentora do vice até aquele momento era a Holanda, que perdeu da Argentina em 1978.