1962: quem persevera alcança de novo

Time brasileiro perfilado para a partida decisiva contra a Tchecoslováquia. Em pé: Djalma Santos, Zito, Gilmar, Zózimo, Nilton Santos e Mauro. Agachados: Garrincha, Didi, Vavá, Amarildo e Zagallo. Se estivéssemos com pressa, e quiséssemos resumir a Copa de 1962 em uma única e simplória frase, poderíamos certamente dizer: em time que está ganhando, não se mexe. Até porque, e nem tão lá no fundo assim, foi isso mesmo: o Brasil ganhou, decidiu não mudar muito e, graças a isso, acabou ganhando de novo. De fato, seria um modo bem prático para contar tudo em poucas palavras. Mas, se fosse plenamente adotado, esse tipo de narrativa passaria ao largo de muitos detalhes importantes desta que foi nossa segunda conquista em Copas do Mundo – além do que, sejamos sinceros, também não teria lá tanta graça assim no fim das contas. Tomemos então um pouco de fôlego e nos preparemos para revisitar de modo mais extenso, mas nem por isso livre de algumas reduções, a brilhante e vitoriosa trajetória brasileira na Copa do Chile. Uma história que foi, uma vez mais, o triunfo do equilíbrio entre pragmatismo e imprevisibilidade. Como todos sabem, foi um lento e doloroso parto até que o Brasil finalmente fizesse tudo do jeito certo e conseguisse aproveitar seu sempre enorme potencial, transformando-o em uma seleção poderosa e campeã. Acabou nos custando algumas campanhas frustradas, eliminações prematuras, chances desperdiçadas e até alguns traumas permanentes – ou alguém aí conseguiu esquecer 1950? Seja como for, depois de muitas cabeçadas na parede, finalmente conseguimos encontrar a fórmula capaz de nos levar ao título mundial – e convenhamos, não teria muito sentido jogar tanto esforço pela janela e recomeçar do zero... Assim, João Havelange manteve tudo basicamente do mesmo jeito, confirmando Paulo Machado de Carvalho como chefe de delegação. E Carvalho se esmerou tanto em seu Plano para 1958 que não pareceu de bom tom modificá-lo – de modo que os movimentos de nossa seleção rumo à Copa do Chile seguiram o caminho dos tijolos amarelos, pavimentado por nós mesmos quatro anos antes. Uma das únicas mudanças na comissão técnica acabou sendo, no fim das contas, a mais impactante. Vicente Feola, que nunca foi exemplo de saúde desde que abandonou a sua (segundo ele próprio) medíocre carreira de jogador, acabou acometido por uma nefrite severa, o que só exacerbou os seus já consideráveis problemas. Gordo, com problemas cardíacos e de colesterol, Feola acabou sendo literalmente vetado pelo departamento médico – o homem simplesmente não tinha saúde suficiente para a dura tarefa de conduzir os destinos do atual Campeão do Mundo. Para substituir o enfermo treinador, Carvalho resolveu chamar um amigo pessoal: Aymoré Moreira, que entre outros predicados era irmão de Zezé Moreira, treinador da mesma seleção na Copa de 1954. Aymoré, além do nome estiloso, tinha uma história bem sucedida no futebol, tendo sido goleiro de destaque (jogou até na seleção brasileira) antes de assumir o comando técnico de clubes como Bangu, Portuguesa, Botafogo-SP e Palmeiras. Apesar de uma carreira de poucos títulos e de algumas críticas ao seu estilo supostamente falastrão e conflituoso, Aymoré era um treinador de confiança e adaptou-se rapidamente ao estilo de trabalho de Carvalho, Havelange e Cia. Quem não se adaptou muito acabou sendo João Carvalhaes, psicólogo contratado em 1958 para colocar ordem emocional na nossa seleção. Além de ter quase barrado Garrincha – ao ponto de desautorizar sua escalação nos primeiros jogos, com a alegação de ele ser “irresponsável demais” para jogar a Copa como titular – o homem tinha medo de avião e, vejam só, demonstrou claros sinais de desequilíbrio emocional em momentos decisivos da Copa. Para Carvalhaes, as características dos jogadores surgiam sempre em um viés negativo – a irresponsabilidade de Garrincha era nociva, a frieza de Gilmar era sinal de “desinteresse” do jogo, a experiência de Nilton Santos e Didi eram sinais preocupantes de pretensão e arrogância. Aos invés de localizar as qualidades dos atletas e potencializá-las, o psicólogo ia contra elas – e isso sem entrar no mérito de certas visões beirando a eugenia, que atingiram o ápice em um relatório de 1958 que recomendava “parcimônia” na utilização de atletas negros em nome do “equilíbrio emocional” do time...  Paulo Machado de Carvalho, que não tinha formação acadêmica em Psicologia, mas entendia como poucos de gerenciamento de pessoas, sentiu que a coisa não andava bem e dispensou os trabalhos de Carvalhaes na primeira oportunidade. Para substituí-lo, optou por Ataíde Ribeiro, uma pessoa oposta a Carvalhaes em vários sentidos. Tranquilo, amigável e inegavelmente competente, Ataíde comparecia nas preleções, visitava os atletas nas concentrações e conversava longamente com alguns deles sempre que notava alguma dúvida ou insegurança. Mais do que entender as diferenças de temperamento dos jogadores, o novo psicólogo as incentivava e potencializava em benefício de todo o grupo, sem conversas duvidosas sobre o temperamento do jogador de pele negra e outras bobagens pseudo-científicas do tipo. O plantel, por sua vez, mudou bem pouco de uma Copa para outra. A escalação que disputou a final de 1958, contra a Suécia, era basicamente a mesma que participou da estreia em 1962. A base do plantel era formada por dois times: Santos, cedendo sete atletas, e Botafogo, com cinco. Nomes que eram bastante novos na Copa anterior, como Pelé e Vavá, agora já acumulavam uma experiência bem mais considerável. Atletas como Nilton Santos, do alto dos seus 37 anos, podiam não estar vendendo juventude, mas traziam consigo a experiência necessária para conduzir a nação brasileira rumo a uma nova conquista. Apenas dois nomes mudaram na escalação, ambos na zaga. Orlando lesionou-se e ficou de fora da relação final, com Zózimo (reserva de 1958) assumindo a titularidade e o promissor Juvenal ficando no banco. Na outra posição, Bellini e Mauro fizeram uma disputa acirrada durante quatro anos, revezando-se como titulares em todas as convocações. Enquanto Bellini tinha o espírito de liderança e o mérito de ter sido o capitão do time em 1958, Mauro tinha as credenciais de uma grande fase no São Paulo e de uma série de grandes atuações nos amistosos anteriores à Copa. Aymoré Moreira, que sempre incentivou os jogadores a disputarem lealmente por lugar no time, deu muitas chances aos dois de mostrarem suas qualidades - tanto que, no fim das contas, desembarcou em Viña Del Mar sem uma definição clara quanto a isso.  Depois dos últimos amistosos e treinamentos, Aymoré optou inicialmente por Bellini. Levou em conta, em sua decisão, a experiência do atleta, bem como a vontade de manter a base do time que tinha sido campeão em 1958. A decisão chegou logo aos ouvidos de Mauro – que, inconformado, pediu para conversar em particular com o treinador. Disse, sem meias-palavras, que não aceitaria quieto aquela situação; tinha disputado a maioria dos jogos amistosos, estava consciente de seu bom desempenho e não achava justo ser preterido com base em critérios que, no fim das contas, eram mais subjetivos do que práticos. A disputa com Bellini tinha sido leal, dentro do campo, e ele tinha convicção de ter tido um desempenho superior, de modo que ficar na reserva seria insuportável. Mauro teria ameaçado até mesmo ir embora, caso a injustiça se mantivesse. Aymoré, ao invés de se revoltar com a aparente insubordinação, ficou impressionado com o brio e a vontade de jogar demonstrada pelo jogador, e prometeu que pensaria no assunto. Consultou Carvalho, relatou o incidente para colegas da comissão técnica e, depois de muitas deliberações, decidiu-se: Mauro seria titular na primeira partida da Copa. Teria a chance, dentro de campo, de mostrar que falava sério. O Chile sofreu uma série de dificuldades na organização da Copa – a maior delas, um trágico terremoto, ocorrido nos dias 20 e 21 de maio de 1960. No segundo dia de tremores, o epicentro registrou 8,5 graus na escala Richter, fazendo dele o mais violento abalo sísmico do século XX. Mais de 5.000 pessoas morreram e cerca de um quarto da população ficou desabrigado depois dos tremores. Com a insistência infatigável do à época diretor da Confederação Sulamericana de Futebol, Carlos Dittborn (que cunhou o histórico slogan “porque nada tenemos, lo haremos todo”), a competição foi confirmada sem troca de sede ou maiores atrasos. A estreia brasileira seria, uma vez mais, contra os pobres infelizes do México – já sovados por nós em duas aberturas anteriores de Copa, nas edições de 1950 e 1954. Na véspera do jogo, uma missa, com os jogadores recebendo medalhas com uma mensagem de incentivo do Papa João XXIII. O Brasil entrou em campo no Sausalito de Vinã Del Mar, naquela tarde de 30 de maio de 1962, com Gilmar; Djalma Santos, Mauro, Zózimo e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagallo.  Foi um jogo suado. O México tinha a presença segura do arqueiro Carbajal, que teve atuação especialmente destacada nessa partida. Durante todo o primeiro tempo, o Brasil tentou inutilmente abrir o placar, confrontado sempre com as grandes defesas do goleiro mexicano. Somente aos 11mins da segunda etapa a bola finalmente chegaria às redes: Zagallo, interceptando de cabeça o cruzamento de Garrincha, empurrou finalmente a bola para dentro do gol. Dois minutos depois, Pelé resolveu brincar de Allejo, driblou quinhentos defensores mexicanos e concluiu de forma resoluta para o dois a zero. Um jogo complicado, mas que rendeu dois importantes pontos e mostrou que o Brasil, mesmo mais velho, estava pronto para encarar os desafios daquela campanha. A segunda partida não só manteve a dificuldade da estreia, como acabou multiplicando-a, em mais de um sentido. Em uma partida renhida, o Brasil limitou-se a um modesto empate sem gols contra a aplicada e surpreendente Tchecoslováquia – e ainda teve o prejuízo extra de perder Pelé, seu grande craque entre tantos craques e já então coroado como Rei do Futebol. Ao desferir um potente chute de pé direito que explodiu na trave, Pelé sofreu uma distensão muscular e acabou ficando fora não só do restante do jogo, como também de todo o Mundial. A ironia era evidente: enquanto muito se criticou a lista de convocados pelo excesso de jogadores “velhos”, foi justamente o mais novo de todos o único a sofrer lesão durante toda a Copa. Duplo prejuízo: além de ficar na dependência de uma vitória contra a Espanha (prevista sempre como o adversário mais complicado do grupo), o time ainda se via privado da presença de seu mais talentoso e renomado jogador. Para substituir o gênio ferido, Aymoré Moreira apostou na solução mais simples, sem invenções. Escalou Amarildo, atacante botafoguense de 23 anos incompletos, que de cara se viu diante de uma grande responsabilidade e de considerável desconfiança. Muito se dizia que Amarildo era uma opção abaixo das necessidades do time, que seria mais interessante improvisar uma escalação com Jair ou Pepe, que mesmo não sendo da mesma exata posição de Pelé teriam o talento que faltaria ao voluntarioso, mas limitado, substituto imediato do Rei. Mas Aymoré, conhecido motivador e sempre disposto a depositar confiança irrestrita em seus jogadores, bateu pé. Paulo Machado de Carvalho, que confiava em Aymoré Moreira e sabia que na hora do aperto muitos criticam, mas poucos têm a coragem de decidir, abraçou sem medo a decisão do treinador. Ambos, junto com figuras experientes do elenco como Nilton Santos e Didi, trataram de reanimar os colegas assustados com a ausência do craque Pelé. E Amarildo, jovem e limitado e pouco prestigiado Amarildo, entraria como titular no cotejo contra a Espanha, embate duríssimo que poderia selar o destino brasileiro na Copa do Chile. A Espanha era uma equipe forte por si só, reforçada pela presença de pelo menos dois atletas naturalizados – o uruguaio Juan Santamaria e, mais surpreendentemente ainda, o húngaro Ferenc Puskas, nome destacadíssimo na Copa de 1954. Puskas estava refugiado desde 1958, dois anos após a revolução comunista na Hungria, quando foi disputar a Copa Europa pelo Honved e acabou ficando sem pátria no meio do caminho. Depois de ficar dois anos de molho, graças a uma punição da UEFA, Puskas jogou durante oito temporadas no Real Madrid, tempo mais do que suficiente para requisitar a cidadania espanhola. Mesmo já não sendo mais um garoto (tinha 35 anos) e envolvendo-se em problemas graças a seu temperamento difícil (quebrou tudo em um bar chileno depois que alguns nativos o provocaram chamando-o de “velho”), Puskas ainda era um atacante temível. Curiosamente, Puskas não jogou na partida entre Brasil e Hungria de 1954, vista por muitos como a final antecipada do torneio – e houve quem apontasse essa coincidência, oito anos depois, como um curioso capricho do destino.   A partida em si, disputada no dia 06 de junho no mesmo Sausalito da estreia, foi bastante tensa e repleta de confusão. A Espanha mandou no jogo na primeira etapa, dominando as ações e abrindo o placar aos 35mins, com um chute de fora da área do meio campista Adelardo Sanchez. Instantes depois, o mesmo Adelardo perdeu chance clara de marcar o segundo gol, em um belo chute de voleio. O Brasil estava nervoso, errava muitos passes, e atletas importantes como Garrincha e Vavá estavam jogando abaixo de suas capacidades. No começo do segundo tempo, um lance histórico que, num misto de malandragem e presença de espírito, pode ter significado a salvação brasileira naquela Copa. Deixemos o próprio Nilton Santos, protagonista da jogada, contar o que aconteceu: "Começamos mal e tomamos um gol no primeiro tempo. O técnico espanhol colocara um cara novo e veloz em cima de mim (Adelardo), mas ele era canhoto. Ele ganhava todas as corridas, mas na hora de cruzar, tinha que ajeitar a bola para a perna boa. Nessa hora, eu chegava e roubava a bola. No segundo tempo, a mesma jogada se repetiu, mas, na hora de cortar a bola, acabei derrubando o espanhol dentro da área. Instintivamente, dei dois passos e saí da área. O árbitro estava longe, não viu e marcou falta e não pênalti. Foi pura malandragem, daquelas que a gente aprende nas peladas." Na cobrança de falta desse lance, Puskas marca um golaço de bicicleta, que é anulado pelo juiz chileno por razões que não são visíveis na filmagem do lance – e que o árbitro, infelizmente, nunca explicou verbalmente para ninguém. Esses dois erros consecutivos acabaram desestabilizando emocionalmente os espanhóis – um desequilíbrio que, somado a um cansaço físico dos europeus e à melhora significativa de Garrincha no jogo, criou as condições para uma grande reversão de expectativas. Cansados e assustados, os espanhóis recuaram, e o Brasil veio para cima. Aos 27mins da etapa final, Zagallo fez bela jogada pela ponta e cruzou para Amarildo, aquele que não tinha cacife para substituir Pelé, empatar a partida. Garrincha, endiabrado agora, enchia a Fúria de terror com suas arrancadas e gingados que desafiavam todas as leis, até as futebolísticas. E aos 41mins a virada se concretizou: em incrível jogada individual, na qual passa quase quinze segundos se divertindo às custas de dois pobres marcadores, Mané encontra espaço na ponta direita e cruza com precisão para Amarildo (aquele que era limitado, lembra?) guardar de cabeça para o fundo das redes. Uma grande virada, em um dos mais marcantes (e confusos) jogos daquela competição. Uma vitória que classificava o Brasil, e recarregava as energias de um time que, depois de muito duvidar de si mesmo, reencontrava seu norte na busca do bicampeonato. E que transformava o contestado substituto de Pelé em titular incontestável, duplo perfeito do craque lesionado – ou “o Pelé branco”, como foi apelidado (de forma pouco criativa, diga-se) pela imprensa presente no Chile. A partida de quartas-de-final, contra a Inglaterra, foi um confronto marcado pela genialidade de Garrincha. Jogando sempre para frente, com muita energia e destemor, o Mané deixou atônitos os defensores ingleses, marcou dois gols e foi decisivo na marcante vitória de 3 a 1, resultado seguro e conquistado sem nenhuma sombra das polêmicas que de certo modo mancharam a virada sobre a Espanha no jogo anterior. Vavá fez o outro gol do Brasil, enquanto Hitchens descontou para os ingleses. O gol de Vavá, aliás, demonstra bem o quanto de imprevisível havia no modo Garrincha de encarar o futebol. O lance originou-se de uma cobrança de falta. Para lances de bola parada, estava determinado que Didi seria sempre o batedor – de modo que o experiente meia pegou a bola, ajeitou com carinho e tomou distância para o chute, já imaginando que tipo de angulação daria ao chute e coisas do tipo. De repente, sem nenhum aviso, um vulto passa voando por Didi: era o Mané, ensandecido, que correu para a cobrança e, sem que ninguém entendesse absolutamente nada, desferiu um potente chute de pé direito. A bola bateu na barreira e, no rebote, sobrou limpa para Vavá, que concluiu sem problemas para as redes. Impossível saber o que diabos passou pelo cérebro do Mané – João Carvalhaes, o antigo psicólogo, diria talvez que era um sinal de perigosa irresponsabilidade típica do jogador de pele parda, mas enfim. O ponteiro-direito cobrou a falta, e o Brasil fez o segundo gol. De todos os adversários que encarou no Sausalito naquela tarde de 10 de junho, apenas um venceu o Mané: um cachorrinho preto, que invadiu correndo o campo e ficou passeando serelepe pela intermediária. Garrincha, transformado pelas circunstâncias em um compenetrado zagueiro, tentou pegá-lo; mas a verdade é que o homem não contava com a habilidade daquele negrinho cheio de manha canina. Perdeu na corrida, recebeu uma sensacional ginga de corpo, e por pouco não cai sentado no chão diante do drible refinado de seu adversário de quatro patas. Quem conseguiu deter o bicho, no fim das contas, foi o atacante inglês Jimmy Greaves: esperto, agachou-se diante do cãozinho e, sem assustá-lo, conseguiu agarrá-lo e conduzi-lo para fora do gramado.  A semifinal, uma vez mais, colocaria o Brasil como estraga-prazer da festa de seus anfitriões. Depois de uma série de desgraças naturais e dificuldades financeiras, o Chile tinha conseguido uma campanha muito corajosa na Copa, e havia conquistado a vaga depois de uma suada vitória de 2 a 1 sobre a União Soviética. Antes, tinha jogado (quase literalmente) a vida em um confronto sangrento contra os italianos, que terminou em 2 a 0 para os chilenos e ficou conhecido como “A Batalha de Santiago”. Entre outros mimos, tivemos Umberto Maschio com o nariz quebrado depois de um soco do chileno Leonel Sanchez (filho de um boxeador, diga-se) - agressão que foi devidamente revidada com uma voadora no pescoço (!) pelo italiano David, expulso depois dessa demonstração digna de UFC. Não é a toa que o enviado da BBC descreveu o jogo como “a mais estúpida, repugnante, terrível e vergonhosa demonstração de futebol de todos os tempos”... Felizmente, a partida entre Brasil e Chile teve muito mais futebol do que pugilato – ainda que Sanchez estivesse em campo, e que as agressões não tenham sido de todo deixadas de lado. Do ponto de vista técnico, o Brasil foi sempre superior, e saiu ganhando o jogo muito cedo, em um gol de Garrincha. O placar final de 4 a 2 reflete muito bem o que foi o jogo: um Chile valente, jogando a vida diante de quase 80 mil compatriotas, mas incapaz de fazer frente a um Brasil tecnicamente muito superior. Porém, a imprevisibilidade de Garrincha apresentou-se nesse jogo também em seu lado mais prejudicial. Em momento de descontrole, o Mané agrediu o goleiro chileno Rojas, foi denunciado pelo bandeirinha uruguaio Esteban Marino, e o árbitro peruano Arturo Yamazaki (que já vinha tendo uma atuação, digamos, simpática aos anfitriões) não hesitou em aplicar o cartão vermelho e mandar Mané mais cedo para o chuveiro. A preocupação tomou conta do Brasil – e compreensivelmente, já que o Brasil iria para a finalíssima sem o seu jogador mais destacado até então. Imediatamente depois do jogo contra o Chile, Paulo Machado de Carvalho e seus colegas começaram uma febril movimentação nos bastidores. A idéia era anular a suspensão de Garrincha – e para isso foi solicitado um julgamento em tempo recorde, torcendo pela absolvição que garantiria o Mané na final contra a Tchecoslováquia. No entanto – e muito estranhamente, diga-se – nem mesmo isso foi necessário. Afinal, tanto o árbitro Yamazaki quanto o auxiliar Marino desapareceram logo após a semifinal – o que deixou de ser curioso e se tornou decisivo na medida em que nenhum dos dois entregou os relatórios pós-jogo, não sendo apresentado à FIFA nenhum registro oficial da expulsão de Garrincha. Sem súmula, não apenas era impossível antecipar o julgamento do atleta, como sequer dava para considerá-lo oficialmente expulso no jogo anterior. Ou seja, Garrincha estava automaticamente inocentado e livre para jogar a grande final. Muito se comentou na época sobre um suborno brasileiro aos dois juízes, existindo inclusive boatos de que Marino foi avistado no Brasil, poucas semanas depois da Copa, curtindo agradáveis férias financiadas pela CBD em recompensa aos serviços (não) prestados... Impossível afirmar até que ponto o Brasil de fato interferiu nos bastidores – agora, cá entre nós e deixando as patriotadas de lado: essa história ficou muito, mas muito mal contada MESMO... A decisão, disputada na tarde de 17 de junho no Estadio Nacional de Santiago, colocou frente a frente o Brasil e a Tchecoslováquia, confronto que havia ocorrido na primeira fase e deixado nossa seleção sem o talento do incontestável Pelé. Os tchecos, considerados azarões para a partida decisiva, adotaram uma tática de grande cautela defensiva, em um 4-2-4 que quase virava um então futurista 4-4-2 devido ao recuo constante dos pontas Scherer e Jelinek. Marcando o expulso-mas-não-expulso Garrincha sem nenhuma piedade, a Tchecoslováquia conseguiu alguma superioridade no começo de jogo, e abriu o placar aos 15mins por intermédio de Josef Masopust, em um avanço preciso defesa brasileira adentro. Era, de certo modo, uma reprise de 1958, quando o Brasil saiu perdendo na final contra a Suécia. E continuou sendo um ‘revival’, para falar a verdade. Garrincha, muito marcado, continuou produzindo abaixo do esperado; Amarildo, porém, estava quase sempre livre. E o substituto de Pelé não deixaria escapar essa chance de fazer história. Dois minutos depois do gol tcheco, o atacante fez bela jogada individual pela ponta esquerda e marcou um golaço, empatando cedo o jogo e abrindo o caminho para a reação. No intervalo, apesar do empate, a tendência de virada brasileira era muito clara. E o resultado se confirmaria a partir dos 23mins do segundo tempo, quando Amarildo fez mais uma jogada brilhante – com direito a dois tchecos caindo de bunda no chão – antes de cruzar para Zito, que cabeceou meio torto, mas ainda assim muito efetivo, para as redes. Vavá ainda fecharia a conta e passaria a régua, aproveitando sem perdão uma falha lamentável do goleiro tcheco Schroif. Num cruzamento de longa distância de Djalma Santos, o guarda-redes perdeu o tempo da bola, deixou o esférico fugir de suas mãos e deu o presente para Vavá, que cumprimentou feliz da vida o que seria o gol do título. František Plánička, o histórico goleiro dos anos 30, não ficaria muito orgulhoso do seu conterrâneo nesse caso... E assim foi. O Brasil, outrora alquebrado e descontrolado e trágico e vira-lata Brasil, não só havia sido Campeão do Mundo de futebol como repetiu a façanha, quatro anos depois. Provou a todos que o primeiro título não tinha sido obra do acaso, e mesmo com um time tido como velho e com seu principal craque lesionado, jogou mais do que o suficiente para levar novamente a Jules Rimet. Se fossemos resumir, poderíamos ter dito apenas: em time que está ganhando, não se mexe. No caso, mexeu-se o mínimo possível: apenas doze dos vinte e dois jogadores convocados entraram em campo durante a Copa. Não se mudou o time vencedor, portanto – e o resultado foi o segundo título mundial. Resumimos a história o mínimo possível, mas a história é essa aí. Não seria assim sempre, claro – semana que vem publicamos a história da Copa de 1966, que não nos deixará mentir. Mas 1962 consolidou definitivamente o Brasil no panteão dos grandes celeiros do futebol mundial – e até hoje sentimos os efeitos dessa conquista, graças ao bons Deuses do Futebol. Um brinde a isso, pois. Fotos: Brasil perfilado para o bi (Brazil in the World Cups); Didi mostra seu mais novo peso de papel para a galera (Museu dos Esportes); Nilton Santos, a verdadeira Enciclopédia Ambulante (Histórias do Futebol); Pelé chuta a bola pela última vez na Copa do Chile (Fifa.com); Amarildo mete a bucha contra os espanhóis (Brazil in the World Cups); para parar Garrincha, chileno apela para o vale-tudo (Fifa.com); e Garrincha, com um peso de papel bem parecido com o de Didi (Brazil in the World Cups). ================== Na próxima semana: no meio do caminho, haviam algumas pedras - e o Brasil faz feio na Copa de 1966

Comentários

Daniel Roger disse…
Mais um ótimo texto dessa série maravilhosa.