Há duas quintas-feiras atrás, publicamos por aqui algumas das peripécias envolvendo a seleção brasileira de 1938, na sua mui interessante e digna participação na Copa do Mundo disputada naquele ano. Foi uma jornada bastante memorável, cheia de sacrifícios, demonstrações de entrega pessoal e, é claro, de grandes partidas. Entre esses embates históricos, um deles chama especial atenção – tanto que virou lenda, ganhando a sonora alcunha de Batalha de Bordeaux. Foi um jogo entre Brasil e Tchecoslováquia, dotado de especial virilidade, não raro beirando a batalha campal – e somando mais um pouco de eternidade a um nome que já tinha história mais do que suficiente para ser eterno. Enquanto o post sobre a Copa de 1954 não vem, vamos aproveitando o ensejo e fazendo um pouco de justiça a František Plánička, o Gato de Praga. Simplesmente um dos maiores goleiros do futebol mundial.
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No mundo em que vivemos hoje, talvez esse herói não tivesse sequer tido a chance de entrar em campo. Medindo 1,72m, František Plánička não está nem perto do que se considera o padrão físico de um goleiro de futebol – provavelmente teria sido barrado logo de cara em alguma peneira, caso tentasse a carreira nos dias de hoje. Seja como for, todos os apreciadores do futebol tem muito a agradecer a clubes como Slovan Praha VII, Union VII, Staroměstský SK Olympia e SK Bubeneč, que toparam colocar esse baixote debaixo de suas traves. E mais ainda, devemos ser gratos que o Slavia Prague aceitou aquele jogador de média estatura e permitiu que ele, com meros 19 anos, virasse titular da equipe principal em 1923. Titularidade que se estenderia por 16 anos , oito títulos nacionais e uma Copa Mitropa, percussora da Liga dos Campeões. E que levou o cidadão a defender a Tchecoslováquia em duas inesquecíveis Copas do Mundo.
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Plánička compensava sua relativamente baixa estatura com duas características: sua agilidade debaixo das traves e seu espírito aguerrido e de liderança. Tinha o hábito de deslocar-se incessantemente em cima da linha do gol, enervando os adversários e mantendo-se sempre bem posicionado para as defesas. Somou impressionantes 969 partidas pelo Slavia, e ainda mais incríveis 742 jogos com a braçadeira de capitão. Conhecido pela cordialidade e lealdade, jamais recebeu um cartão vermelho na carreira – e seu espírito esportivo foi tão lendário que chegou a receber, em 1985, um prêmio da UNESCO homenageando-o pelo seu ‘fair play’. Entre outras façanhas, conquistou pelos Sešívaní o primeiro título nacional de sua história, em 1925, e também ergueu a única taça internacional do Slavia até hoje – a Copa Mitropa de 1938, conquistada numa suada decisão contra o Ferencváros (HUN). Único time a participar de todas as edições da Mitropa antes da Segunda Guerra, o Slavia havia feito história antes, em 1925, mas de uma maneira ligeiramente diferente. Na semifinal daquele ano, contra a Juventus (ITA), os tchecos venceram o primeiro jogo por 4 a 0 – e, perdendo o segundo confronto por 2 a 0, resolveram seguir as tradições do leste europeu e apostaram resolutos numa boa e velha retranca para segurar o placar. Retranca, pelo visto, pouco discreta – a torcida italiana se revoltou de tal modo que passou a arremessar pedras no gramado, uma delas atingindo Plánička e impedindo sua continuação no jogo. Revoltados (e assustados) com a reação da torcida, os Sešívaní deixaram o gramado, sendo eliminados do campeonato pelo abandono de campo...
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Plánička defendeu a seleção tcheca em 73 jogos, sendo capitão do time em 37 delas. Participou de uma geração de alta qualidade, uma das maiores (senão a maior) da história do país, jogando ao lado de craques como Oldřich Nejedlý (artilheiro da Copa de 1934 com cinco gols), Jaroslav Burgr e Erich Srbek, que depois se transformaria em renomado treinador. Foram duas boas participações de Plánička e da Tchecoslováquia, as Copas de 1934 e 1938. Na primeira, a seleção foi uma das grandes sensações, vencendo Romênia (em um espetacular 2 a 1 de virada), Suíça (em outro emocionante embate, definido em 3 a 2) e Alemanha (3 a 1, com Nejedlý marcando os três gols) antes de tombar diante dos anfitriões italianos na grande final. Foi uma partida renhida, aquela – o placar fechado até os 31mins do segundo tempo, quando Antonín Puč fez o que parecia ser o gol do título tcheco. Mas Orsi empatou cinco minutos depois, em lance muito criticado por um suposto toque de mão do meia Giovanni Ferrari. E a vitória italiana viria na prorrogação – em um lance no qual Plánička foi enganado pelo desvio da bola. Tendo se agachado para pegar um chute rasteiro, foi acidentalmente surpreendido pelo colega Josef Čtyřoký, que tentou bloquear o chute de Angelo Schiavio e acabou encobrindo o goleiro de seu próprio time.
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Seja como for, a partida foi muito controversa, e os jogadores da Tchecoslováquia não tiveram muitos pudores em se declararem seriamente prejudicados pela arbitragem. O juiz da final, o sueco Ivan Eklind, havia arbitrado apenas três jogos na carreira antes de assumir o apito na final de um torneio internacional, e abundam relatos de uma conversa entre ele e o ditador italiano Benito Mussolini, instantes antes da partida. Plánička, anos depois, declararia sem receios: “Nos roubaram a vitória. A atmosfera no estádio era muito tensa. Eklind estava no camarote de Mussolini. Não sabíamos o que estavam discutindo, mas tínhamos um palpite. O homem parou vários lances normais com seu apito, e ignorou faltas muito violentas”. O árbitro seria suspenso após essas acusações, mas alegou injustiça e recebeu clemência, arbitrando jogos também nas Copas de 1938 e 1950 – sem receber críticas maiores, nesses casos.
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A Tchecoslováquia não conseguiria chegar tão longe em 1938, na França – parou diante do Brasil nas quartas de final. Antes, havia superado a Holanda numa partida inusitada, que permaneceu sem gols no tempo normal e transformou-se num dilatado (e pelo jeito ilusório) 3 a 0 na prorrogação. Foram dois dramáticos confrontos contra os brasileiros, e o primeiro deles (disputado em 12 de junho de 1938) é o que hoje chamamos de Batalha de Bordeaux. O jogo, conforme relatamos em post anterior, foi de um espírito aguerrido que beirou a brutalidade, sendo até hoje considerado um dos mais violentos embates da história das Copas. Dois brasileiros e um tcheco foram expulsos, e no fim do tempo normal, empatado em 1 a 1, os maiores craques dos dois times foram obrigados a sair de campo – Leônidas quase desacordado de tanto apanhar em campo, Nejedlý com o pé direito fraturado. Plánička também não estava nada bem: após incidente com o brasileiro Perácio, sofreu grave lesão no braço direito, e tudo indicava que não poderia continuar no jogo, o que seria um enorme abalo no já claudicante ânimo da Tchecoslováquia.
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Hoje, tantos anos tendo se passado, há muitas divergências sobre a real natureza da lesão de Plánička, bem quanto às circunstâncias nas quais ela se deu. Há quem diga que o arqueiro feriu-se em dividida direta com Perácio; outros alegam que o choque, na verdade, foi contra uma das traves, na tentativa de defesa. Do mesmo modo, algumas fontes alegam que Plánička quebrou o braço, outras que deslocou a clavícula, e tem quem diga até que as duas coisas se deram ao mesmo tempo. Seja como for, o homem ficou visivelmente machucado, mas resistiu firme até o final do tempo regulamentar. E, mesmo nitidamente sem condições, permaneceu em campo durante toda a prorrogação também, já que não eram permitidas substituições na época. E não apenas isso. Embora estivesse com dois atletas a menos (sete contra nove), o Brasil foi para cima dos tchecos no tempo extra, apostando na frágil situação do goleiro adversário para marcar o gol da vitória. Mesmo com um só braço, Plánička fechou o gol, evitando a vitória brasileira com uma série desconcertante de defesas. Em uma demonstração de bravura – e de capacidade técnica – que surpreende ainda hoje, o guarda-redes garantiu o empate e o jogo extra, além de entrar definitivamente para a história do futebol.
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Na partida de desempate, a vitória foi brasileira, graças especialmente a uma opção técnica. Enquanto os tchecos foram com os melhores jogadores disponíveis (mesmo que extenuados pela partida de dois dias antes), o Brasil optou por ir com um time praticamente reserva, mantendo apenas o goleiro Válter e o atacante Leônidas. Descansados por um lado, e com um craque diferenciado por outro, o Brasil venceu de virada por 2 a 1 – valendo lembrar que os aguerridos tchecos estavam sem seus dois maiores nomes, Nejedlý e o próprio Plánička. Mesmo eliminado relativamente cedo, o guarda-redes garantiria a presença na seleção da Copa, eleita por jornalistas do mundo todo – homenagem justíssima e inevitável a um atleta que superou a própria incapacidade física em nome de algo muito maior.
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Nunca mais o goleiro teria a chance de jogar uma Copa – a Segunda Guerra estourou em 1939, e de qualquer modo Plánička já tinha 34 anos quando de sua segunda aparição em Mundiais. A aposentadoria dele foi forçada, na dramática divisão de território resultante da invasão pelos alemães do Terceiro Reich. Mas nada seria capaz de embotar uma história tão rica e marcante – tanto que František Plánička segue sendo uma lenda do futebol, eleito em 1999 pelo IFFHS como o nono melhor goleiro de todos os tempos. Sua morte, em 1996, rendeu uma última história, bela e cheia de dignidade como todas as outras. Karel Poborský, herói do futebol da República Tcheca, estava com a viagem marcada para a Inglaterra, onde assinaria contrato com o Manchester United. Quis o destino que a morte de Plánička ocorresse no mesmo período – e Poborský não teve dúvidas: cancelou o voo, permanecendo em Praga e adiando a assinatura de contrato para poder comparecer ao funeral de um verdadeiro herói nacional. Um admirável senso de prioridades, eu diria. Plánička, de onde quer que estivesse, deve ter ficado orgulhoso.
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Fotos: František Plánička e seu brinquedo favorito (El Periscopio); cumprimentando Szepan antes da semifinal contra a Alemanha em 1934 (Bloggang.com); foto supostamente tirada durante a Batalha de Bordeaux, contra o Brasil (OpiniãoFC); e já na terceira idade, cheio de dignidade (Conti-online.com).
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