País de Gales: um brilhante fracasso
Sempre fico um tanto fascinado com as histórias que somem lentamente no esquecimento – os contos de glória, dignidade e coragem que nós, em nossa simplista admiração por taças e títulos e Bolas de Ouro, vamos inconscientemente permitindo que virem apenas contos, apenas histórias, notas de rodapé no caminho das décadas. Acredito que boa parte do que de bonito e humano existe, tanto no futebol quanto na vida, está justamente nessas histórias “menores”, nesses recortes que, quando revistos, revelam a beleza que sequer suspeitávamos que tivessem. Por exemplo, todos cantam até hoje as glórias da primeira conquista brasileira, a fulgurante Copa de 1958 na Suécia. Mas creio que a maioria de nós não saberia dizer de cor a sequência de jogos que encaramos para garantir a primeira visita da Jules Rimet. Nem eu mesmo sabia, antes de escrever a respeito na semana passada... E pouquíssimos devem lembrar que a seleção do País de Gales passou pelo nosso caminho nessa campanha – talvez no máximo pela questão estatística, de ter sido o primeiro gol de Pelé em Copas do Mundo e tal. Mas a história da primeira e única participação dos galeses em Copas é das mais fascinantes, podem acreditar. Uma história cheia da nobreza humilde dos que triunfam em meio aos próprios fracassos.
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O País de Gales tem uma história bastante longa no futebol – basta lembrarmos que foi nada menos que a terceira seleção nacional oficialmente constituída no mundo, atrás apenas da Inglaterra e da Escócia. Sua partida inaugural, uma derrota de 4 a 0 para o selecionado escocês, deu-se no já distante 25 de março de 1875, quando certamente nem se imaginava em algo próximo de futebol no Brasil. Seus títulos internacionais estão todos concentrados no extinto Campeonato Britânico, o mais antigo e duradouro torneio de seleções da história do futebol, no qual Gales triunfou em doze edições, cinco delas dividindo a taça com outro(s) país(es). Mas, em se tratando de Copa do Mundo, os galeses nunca tiveram lá muita sorte. Ficaram fora das primeiras edições pela rixa com a FIFA, causada pela polêmica envolvendo o pagamento dos jogadores amadores, e depois não conseguiram quase nunca superar a fase das eliminatórias. Quase entrou em 1982 e 1994, situações onde acabou eliminado no saldo de gols – e teve sua única chance de jogar a Copa em 1958, numa classificação que se deu em circunstâncias quase típicas, em se tratando da nação.
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O País de Gales ficou no Grupo 4 das eliminatórias européias. Venceu as duas partidas em Cardiff (1 a 0 na Tchecoslováquia e estrepitosos 4 a 1 na Alemanha Oriental), mas perdeu as duas fora de casa, e acabou ficando em segundo lugar no grupo, com 4 pontos, eliminada pelos tchecos. Em princípio, a seleção galesa estava fora do Mundial – mas as bizarras circunstâncias de uma das eliminatórias acabaram modificando essa situação. A chave em questão era encabeçada por Israel, e dois dos seus adversários (Sudão e Egito) recusaram-se a enfrentar a nação rival. Uma terceira seleção, a da Indonésia, insistiu em jogar contra os israelenses em campo neutro, o que foi negado pela FIFA. Com isso, Israel foi declarado vencedor do grupo, e ganharia a vaga sem disputar uma partida sequer. Temendo desequilíbrio técnico, a Entidade resolveu promover um ‘play off’ da nação asiática contra algum dos segundos colocados nas eliminatórias européias. O primeiro sorteado foi a Bélgica, que declinou da disputa; o segundo, como se pode adivinhar, foi o País de Gales. Vencendo os dois jogos em um duplo 2 a 0, os Dragões galeses conquistaram a vaga para a primeira Copa de sua história – caindo num grupo bem complicado, contra o país-sede Suécia, o México e a temida Hungria, que quatro anos antes havia impressionado o mundo e sido derrotada apenas na final contra a Alemanha Ocidental.
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Era uma seleção de certa qualidade, a que Gales ostentava na época. Seus jogadores estavam espalhados por clubes da Inglaterra e de seu país natal, com uma notável exceção: John Charles, o indiscutível craque maior da história de Gales, que naquela época já tinha sucesso mundial vestindo as cores da Juventus (ITA). Descoberto por Major Buckley, histórico caçador de talentos do Leeds United, John Charles faria sólida carreira de quase uma década no clube inglês, ao ponto de ser considerado por muitos como um dos maiores jogadores a atuar em todo o Reino Unido. Sir Bobby Robson, por exemplo, comparou o homem com Pelé, Maradona e George Best, o que não é pouca coisa. Além disso, o craque era muito versátil, atuando em funções de centromédio e de centroavante com a mesma maestria. Um jogador que, tivesse nascido inglês, talvez estivesse entre os heróis imortais do futebol... Além da qualidade desse jogador incomparável, o País de Gales tinha lá algumas outras Cartas Na Manga. Por exemplo, o “inside-forward” Ivor Allchurch, que depois jogaria no Newcastle e se tornou conhecido por seu estilo de jogo cadenciado e de passes precisos – quase um Tcheco galês, por assim dizer. Além disso, tínhamos a segurança do guarda-metas Jack Kelsey (que defendeu o Arsenal por 14 anos consecutivos e depois passaria mais de 25 anos como vice de finanças do clube inglês), a presença de área do zagueiro Mel Hopkins e a força do meio-campista Mel Charles, irmão de John e considerado outro dos cérebros daquele time. Na casamata, Jimmy Murphy, ex-jogador que atuava como “wing half” e que ganhou três Campeonatos Britânicos durante a carreira. Além do mais, foi assistente no Manchester United, responsável direto por revelar ninguém menos que Bobby Charlton, e diz a lenda que Murphy chegou a ser convidado pelo Brasil para participar da comissão técnica da nossa seleção...
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A Copa de 1958 foi a única na qual as quatro nações que constituem o Reino Unido participaram, com resultados distintos. A Escócia teve desempenho abaixo da crítica, conseguiu apenas um mirrado empate contra a Iugoslávia e ficou na lanterna do Grupo 1. A Inglaterra, mesmo invicta, conquistou apenas empates no Grupo 3 e acabou eliminada por Brasil e União Soviética. Restou aos menos cotados – Irlanda do Norte e País de Gales – defender a honra britânica além dos jogos da primeira fase. No caso dos galeses, a tarefa era complicada, como dissemos – mas os Dragões foram altamente competentes, e isso não se pode negar. Na estreia, contra a tão temida Hungria, já mostraram que não estavam de brincadeira: mesmo saindo perdendo muito cedo, gol de Boszik aos 5mins, tiveram o brio necessário e empataram a partida com um tento precioso do inconteste John Charles. Depois do empate, a tendência foi considerar que os Magiares não estavam mais lá essas coisas – sem levar muito em conta a competente e corajosa seleção que os havia manietado sem muito espaço para contestação. Na segunda partida, de certo modo, deu-se o inverso: o País de Gales vencia o México por 1 a 0 até o final do segundo tempo, gol de Allchurch, quando bobeou no finalzinho e permitiu que Belmonte empatasse o jogo. Um placar que complicou a classificação, e obrigou os Dragões a não perderem para a anfitriã e já classificada Suécia caso quisessem a classificação. E assim foi: armando uma retranca eficiente, os visitantes conseguiram ser os únicos (fora os campeões brasileiros) a não perder para a Suécia, segurando um magro, mas mesmo assim maiúsculo zero a zero.
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Com essa sequência de empates, e mais a vitória dos húngaros sobre os mexicanos por 4 a 1, houve um empate em pontos entre País de Gales e Hungria, e a necessidade de disputar um jogo extra. E essa partida, disputada no início da noite do dia 17 de junho de 1958, no Råsunda Stadium de Solna, é um dos maiores momentos da história do futebol galês – comparável, talvez, apenas ao histórico 4 a 1 aplicado sobre os ingleses em 1980, ou a vitória de 3 a 0 sobre a Espanha nas Eliminatórias da Copa de 1986. Se as atuações anteriores foram modestas em técnica, embora razoáveis nos resultados, o mesmo não pode ser dito da partida de desempate; nessa, todos os relatos são de uma ótima demonstração de futebol por parte dos Dragões. A Hungria saiu ganhando, gol de Tichy aos 33mins da primeira etapa. Tendo perdido boa parte do talento que a fez vice-campeã na Copa de 1954, e gradativamente perdendo terreno na disputa de futebol contra futebol, os Magiares acabaram apelando feio para a violência. Um festival de agressões, buscando intimidar os adversários galeses – e que, segundo nos contam, foram alvo de constantes vaias da torcida presente. No intervalo, o placar ainda era desfavorável para o País de Gales – mas na volta para o segundo tempo tudo mudou de figura. Sempre melhores em campo – e comandados por um valente John Charles que, mesmo mancando, seguia sendo o centro técnico do time – os galeses pressionaram até empatar o jogo em um chute preciso de Allchurch. A virada era questão de tempo, e assim foi: faltando pouco mais de dez minutos para o fim do jogo, o ponta Medwin recebeu lançamento preciso e, sem hesitar, cumprimentou o arqueiro Grosics. Com o apito final, jogadores como John Charles e Ron Hewitt saíram carregados de campo, sofrendo com a pancadaria húngara, mas naquele momento isso de pouco importava. Os humildes Dragões tinham passado por cima dos badalados Magiares e, invictos, seguiam em frente na Copa.
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O problema, como sabemos, viria depois. Contra o Brasil, o País de Gales sofreu uma baixa fundamental: John Charles, o grande nome daquele time, não conseguiu recuperar-se a tempo das lesões e ficaria de fora da partida. O Brasil, naquele momento, já era tido como um dos favoritos ao título, e encarar craques como Didi e Nilton Santos era uma perspectiva das menos agradáveis. Desfalcado de seu maior craque, Jimmy Murphy apostou na força defensiva, e posicionou seus atletas de modo a segurarem ao máximo o ímpeto brasileiro, contando com a participação veloz dos pontas Medwin e Jones para as jogadas de contra ataque. Foi uma tática que por pouco não funcionou logo de cara: com menos de um minuto de jogo, Jones lançou Webster na cara de Gilmar, mas o chute acabou estourando contra uma das traves. Mas a verdade, apesar da marcação forte e leal, da excelente atuação do goleiro Kelsey e da dedicação tática invejável, é uma só: o Brasil era, mesmo, muito mais time. Para exemplificar, reproduzo aqui um belo trecho, escrito pelo enviado do Times para a cobertura daquela Copa e publicado na edição de 20 de junho de 1958:
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“A maestria brasileira com a bola, em todos os ângulos e em cada fase – exceto no momento final da conclusão – era não menos que de tirar o fôlego. Eles a impulsionavam e a acariciavam; eles a matavam, imóvel como uma pedra, e então a faziam correr, girando-a em uma linha de passe que geralmente resultava nos galeses correndo em círculos durante três quartos da jogada. Aqui, de fato, tínhamos poesia em movimento. Ainda assim, e estranhamente, esse controle soberbo parecia se esvair assim que o ponto explosivo fosse alcançado próximo da meta. Certamente que Kesley, que foi impecável debaixo das traves, fez duas ou três intervenções brilhantes quando tudo parecia perdido; mas ainda assim permanecia a impressão que Garrincha, Didi, Mazzola, Pelé, Zagallo e companhia detestavam a ideia de ferir a bola com algum golpe mais agudo. Eles desejavam passear com ela pelo gramado, e era assim que jogavam diante da aglomerada defesa do País de Gales”.
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Menos poéticas, mas talvez ainda mais esclarecedoras, são as palavras de Mel Charles, irmão do craque ausente e ele mesmo um dos craques daquele time corajoso, em depoimento concedido ao The Guardian:
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“Quando eles entraram em campo, pensei que não teríamos nenhuma chance. Eu joguei como centromédio, e com aqueles cinco atacantes brasileiros indo na sua direção você tinha que estar no seu melhor ou eles fariam um sete ou oito gols. A rapidez deles com a bola era algo que eu nunca tinha visto antes. (...) Pelé marcou o gol da vitória, e deve ter sido o gol mais sortudo da história porque eu perdi a bola por uma polegada – ele chegou nela logo antes de mim – e então ela passou por Stuart Williams também e foi quicando até a rede”.
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Foi uma derrota chorada e chorosa, aquele 1 a 0 sofrido contra o Brasil – e, infelizmente, não foi muito reconhecido nem mesmo na época em que os jogos ocorreram. A partida dos atletas não teve nenhuma cerimônia pública ou despedida, e nenhum torcedor viajou para a Suécia para acompanhar a delegação. Depois de uma campanha histórica e até hoje inédita, os atletas retornaram para o País de Gales quase incógnitos, como desconhecidos. Ou como turistas, como o mesmo Mel Charles conta em outro trecho: recém chegado a Swansea, onde defendia as cores do clube local, Mel foi até a estação de trem e ouviu do bilheteiro: “e então, rapaz, voltando do feriado?”.
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Eis a natureza curiosa dessa bonita campanha do País de Gales. Um desempenho histórico, nascido a partir de uma eliminação corriqueira que, por força da moeda, virou vaga para a Copa. Uma seleção pela qual ninguém dava um tostão furado, mas que venceu o então vice-campeão mundial e que acabou indo mais longe do que seus badalados vizinhos britânicos. Uma campanha quase sem vitórias, mas com uma única derrota vendida a alto preço contra a seleção que conquistaria o título. Um grupo de atletas que representou o País de Gales como nenhum outro conseguiu antes ou depois, e que não recebeu os aplausos que merecia por esse importante triunfo. Mas que se sentiram orgulhosos de defender o país na maior competição de futebol do planeta, e que o fizeram com galhardia e dignidade invejáveis.
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A história desses atletas renderia um livro posterior, “When Pele Broke Our Hearts” (“Quando Pelé Partiu Nossos Corações”, na tradução), escrito pelo jornalista Mario Risoli. Posteriormente, Mel Charles contaria a história com suas próprias palavras, em uma autobiografia lançada no começo de 2009. Mas creio que o que resume a história está na expressão que coloquei no título do artigo, tirada de um fórum de discussão que visitei enquanto fazia a pesquisa sobre o assunto. Um brilhante fracasso, sem dúvida. Que não rendeu taça nem recepção com festa e música, mas traz em si um exemplo do que de mais bonito existe no futebol.
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Fotos: seleção do País de Gales posando antes da viagem para a Suécia (BBC); escudo dos Dragões Galeses (footballderbies.com); Mel Charles, o centromédio de Gales (The Guardian); foto da histórica partida contra a Hungria (eBay); e Allchurch sobe entre Bellini e De Sordi (Keystone/Getty Images).
Comentários
Isso que é time copeiro: se classifica pra Copa na quinta chamada, empata quase todas e faz uma retranquinha que quase dá certo diante do melhor time do mundo.
O primeiro gol nos 2 a 1 contra a Hungria é espetacular. Baita curva na bola.
"De que planeta veio Messi?"
Nós agora fomos privilegiados por saber disso!
Tirei boa parte das informações de um depoimento de Mel Charles ao The Guardian. Nele, entre outras coisas que acabei não incluindo no post, ele afirma que, se John Charles estivesse em campo, o País de Gales poderia ter saído com a vitória. E não dizia aquilo por ser irmão do cara, mas porque ele realmente era um jogador fora de série, muito melhor do que todos os demais. Pelo que li e vi no YouTube, John Charles era monstro mesmo - habilidoso quando possível, cirúrgico quando necessário, elegante sempre. Rende um post por si só, o homem - e acho que o Fred vai gostar de saber que o apelido dele era GENTLE GIANT! \m/