Ladislav Petras e a fé no futebol

Como todos nós sabemos, a memória costuma ser mais generosa com os vencedores do que com os derrotados. Quem aí, por exemplo, ignora a seleção brasileira da Copa de 1970, o glorioso escrete canarinho que conquistou o Tri e encheu os olhos de todo mundo com uma das mais vistosas demonstrações de futebol que já se viu? Pois é, essa é fácil. Mas quantos de vocês, amigos leitores/as, lembravam que essa poderosa seleção recheada de craques começou perdendo na partida de estreia, contra a hoje esquecida Tchecoslováquia? Não muitos, eu imagino. Pois bem, a memória pode ser seletiva e jogar na sombra muitos heróis, mas nunca é demais lançar a luz da boa lembrança sobre aqueles que, mesmo não erguendo taças, merecem um parágrafo na história do futebol. Falemos, portanto, de Ladislav Petráš, autor do primeiro gol sofrido pelo Brasil em 1970 – um gol que, mais do que abrir o placar, motivou um gesto que hoje é banal, mas que na época surpreendeu o mundo.
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Petráš tinha vinte e quatro anos incompletos quando disputou aquela histórica partida, no ensolarado Jalisco de Guadalajara. Fora da então Tchecoslováquia, era um desconhecido – em seu país natal, porém, já era praticamente uma lenda viva. Desde o começo de sua carreira, no humilde Baník Prievidza de sua cidade natal, o jovem atacante se destacava dos demais, e não apenas pelo talento com a bola no pé. Dono da personalidade imprevisível comum aos gênios do futebol, Laci-Baci (como era chamado) ganhou notoriedade pelas atitudes inesperadas, às vezes beirando o surreal. Conta-se, por exemplo, que Petráš marcou três gols em determinada partida, um atrás do outro – e, após concluir o ‘hat trick’, simplesmente saiu andando de campo, um sorriso nos lábios, como que dizendo a todos que já tinha feito todo o serviço e que agora se virassem sem ele...
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Depois de uma temporada marcante no Dukla Banska Bystrica (1968/69), onde foi artilheiro nacional com 20 gols, Petráš foi contratado pelo FK Inter Bratislava, clube pelo qual jogou durante 10 anos e com o qual teria intensa relação. Tão ligado o jogador tornou-se ao clube e aos torcedores que uma vez chegou a fugir do hospital onde estava para disputar uma partida, retornando ao leito depois de ter disputado o jogo... Além das loucuras, Ladislav Petráš não economizava nos gols. Foi artilheiro nacional pelos aurinegros na temporada 1974/75, repetindo os 20 gols de sua primeira artilharia – e com direito a históricos cinco gols em um só jogo, marcados ainda por cima contra o poderosíssimo Sparta Prague. A partida em questão terminou em impressionantes 7 a 4 para o Inter, e não é a toa que se tornou um evento lendário no folclore futebolístico local. Curiosamente, Laci-Baci nunca conquistou um título nacional jogando com os žanety, o que não deixa de ser uma pena.
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Com um temperamento desses, era de se prever que a relação de Petráš com a arbitragem não fosse exatamente tranquila. De fato, expulsões eram comuns na carreira do atacante. Uma delas, inclusive, na partida decisiva que classificou a Tchecoslováquia para a Copa de 1970, disputada contra a Hungria em campo neutro (Marseille, na França) e vencida por 4 a 1. De qualquer modo, a relação tensa de Petráš com os juízes rendeu alguns momentos cômicos também. Em uma partida de 1976/77, disputada contra o Lokomotiva Kosice, os žanety saíram ganhando de 3 a 0, mas bobearam e permitiram dois gols do Lokomotiva, colocando em risco a vitória antes dada como certa. No meio da pressão, a bola saiu em lateral, e Laci-Baci tratou de fazer uma cera técnica, no seu estilo tão peculiar. Deixou a bola cair de suas mãos, chutou-a “acidentalmente” para longe de si quando foi pegá-la, e repetiu a pataquada umas três vezes antes que o juiz, furioso, colocasse a mão no bolso em busca do cartão amarelo. Vendo que seria punido, Petráš correu até o juiz, disse algo em seu ouvido e deu um tapinha amistoso na cabeça do árbitro. Resultado: fez o juiz dar uma risada, e escapou-se de forma marota de uma punição que poderia complicar ainda mais o jogo. O Inter Bratislava saiu com a vitória por 4 a 2, e Laci-Baci com mais uma história curiosa para sua coleção.
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Voltemos, então, para 1970, para o Jalisco em Guadalajara, para a estreia de Brasil e Tchecoslováquia naquela Copa que entraria para a história. Como lembramos no início, o Brasil saiu perdendo, gol de Petráš, em bela arrancada da intermediária e chute forte em diagonal, sem chances para Felix. Na comemoração, a surpresa: sorridente e emocionado, Petráš ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e juntou as mãos, em uma breve e comovida oração. Hoje em dia, estamos acostumados com a presença de Atletas de Cristo e com camisetas dizendo que Deus é fiel, mas na época uma manifestação do tipo não era muito comum. E não se esqueçam que, meros dois anos antes, o mundo tinha testemunhado a Primavera de Praga, lançando a Tchecoslováquia em um ferrenho regime comunista que perseguia a Igreja Católica sem nenhum constrangimento. Mais do que uma demonstração de fé, o gesto de Petráš foi um ato de rebelião, uma tomada de posição, praticamente um manifesto – uma atitude talvez inesperada vinda de um jogador tão imprevisível, mas sem dúvida dotada de profundo significado. Pena que depois Jairzinho a banalizaria, repetindo o gesto em uma demonstração menos de fé e mais de ignorância política. Nem sempre os vencedores são os únicos heróis, como se vê...
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Ladislav Petráš faria também o único outro gol de seu país naquela copa, em partida contra a Romênia. Anos mais tarde, participaria da maior conquista do Leste Europeu em todos os tempos: o título da Tchecoslováquia na Eurocopa de 1976, superando a então campeã mundial Alemanha Ocidental nos pênaltis. Foi a grande glória de Laci-Baci como jogador – em 1983 ele encerraria a carreira pelo WAC Viedeň, sem nunca ter conquistado um título nacional. Somente em 2000/01 é que Petráš sentiria o sabor de um título de clubes, conquistando pelo velho Inter Bratislava o campeonato eslovaco na posição de auxiliar técnico. Um título que não se repetirá, já que o Inter fechou as portas em 2009, engolido pelo FK Senica... De qualquer modo, Petráš segue ativo nas casamatas, e trabalhou por um tempo no minúsculo Rapid Bratislava antes de ser contratado para gerir a seleção eslovaca sub-21. Uma posição digna de um jogador que, mesmo temperamental, tem muito que ensinar, dentro e fora do campo. Não ganhou a Copa, nem do Brasil conseguiu vencer, mas ainda assim deixou sua marca. Palmas para ele.
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Foto: Ladislav Petráš tocando terror em uma zaga do Leste Europeu (Slovak Soccer).

Comentários

Vicente Fonseca disse…
Sensacional, como de hábito. Só o Igor pra descobrir que "aquele carinha que fez o gol da Tchecoslováquia no Brasil em 1970" tem muito mais história do que aquele célebre sinal da cruz cheio de significado político.

Mas não pedirei para abrir um blog Bola Tcheca, pois pegaria mal.
Juliano Tatsch disse…
Demais heim. Muito bom mesmo. "escapou-se de forma marota" foi genial. Poderíamos dizer que ele era um jogador serelepe. Natusch é mestre.
Prestes disse…
Belo personagem!

Sensacional a ambientação com os acentos tchecos, ijhdhdfshusfuhdsf

Como tu conseguiu??

E essa informação de que o Inter Bratislava acabou, hein? Tinha passado totalmente batida por mim. Um clube tradicional. O que aconteceu?
natusch disse…
Bom, os acentos podem ser encontrados no mapa de caracteres do Windows, embora seja um saco ficar catando - ou seja, eu geralmente apelo pro ctrl+c e ctrl+v mesmo, deixando um bloco de notas do lado para colar as palavras e copiá-las depois com mais facilidade. É um servicinho chato, mas a fidelidade aos dados e o efeito estético valem a pena =P

Quanto ao FK Inter Bratislava, foi mais uma vítima da estranha lógica clube-empresa que funciona no Leste Europeu. Aparentemente, o departamento de futebol era deficitário, de maneira que a ASK Inter Bratislava (fundação poliesportiva que desde 2004 era detentora dos direitos sobre a marca) resolveu vender o futebol, assim, sem mais nem menos. O FK Senica comprou o espólio, que inclui o estádio e, pasmem, a vaga na primeira divisão nacional - o FK Senica jogava na quarta liga local antes do negócio... Isso tudo se deu ano passado. Atualmente, o FK Senica joga na Liga principal do país, e o Inter Bratislava ainda existe, em esportes como basquete e ciclismo, mas sem departamento de futebol. É uma história complicada, que tentei resumir aqui - e, de qualquer modo, convenhamos que é até deprimente uma coisa dessas...
Samir disse…
Grande Igor, cada texto uma verdadeira aula. Destaco a força desse trecho: "Pena que depois Jairzinho a banalizaria, repetindo o gesto em uma demonstração menos de fé e mais de ignorância política. Nem sempre os vencedores são os únicos heróis, como se vê..."
Unknown disse…
Que extraordinario jogador. Saudades da copa 70
Meu nome é Petras em homenagem ao mesmo..., inclusive fiquei muito feliz pelo talento desempenhado nessa maravilha de texto. Parabéns!!!