Uma foto, um centroavante e a História
Geralmente, a gente escolhe as fotos para ilustrar um texto bem depois de tê-lo escrito. Com o assunto bem decidido e já pensando em um determinado efeito ou ligação entre a imagem e o conteúdo do artigo, fica obviamente mais fácil definir qual será a foto que vai aparecer logo ali, no topo do texto, logo após o título. Mas confesso sem muito pudor que desta vez segui o caminho oposto: revi a foto, por um desses acasos de internet, fiquei absolutamente tocado e resolvi escrever um texto para, basicamente, justificar a publicação dela por aqui. Não apenas por ser uma imagem quase icônica de um título muito importante para os gremistas - e sim, eu sei que ando sendo bem gremista em muitos dos meus assuntos, espero que os leitores colorados e de outros times deem um desconto por isso. Mas também por ser uma foto de rara beleza visual, uma composição muito feliz que captura um momento histórico e que, mesmo congelada, parece eternamente em movimento. E por ser um registro do instante mais mágico da carreira de um nome nunca esquecido, mas nunca suficientemente lembrado: César, um dos grandes heróis da Libertadores de 1983 e que, para o bem e para o mal, ficou eternamente marcado por um único lance, um único gol. Uma única imagem, talvez possamos dizer.
César Martins de Oliveira nasceu em São João da Barra (RJ), no dia 13 de abril de 1956 - vinte e sete anos, três meses e 15 dias antes do jogo e do gol que o colocariam na história do futebol mundial. Surgiu para o futebol como atacante do América, no qual atuou durante três anos e onde sagrou-se um dos artilheiros do Brasileirão de 1979, dividindo com o cruzeirense Roberto César a marca de 12 gols marcados. Com a bela campanha, César chamou interesse de clubes estrangeiros e, numa época em que transferências não eram tão comuns quanto hoje, assinou contrato com o Benfica, onde disputaria outras três temporadas com razoável destaque. Entre outros feitos, participou duas vezes de campanhas vitoriosas no Campeonato Português, nas temporadas 1980/81 e 1982/1983. Mas em 1983, saudoso de casa, resolveu aceitar a proposta do Grêmio e juntar-se ao grupo que disputaria a Libertadores da América daquele ano.
Não foi, digamos a verdade, uma jornada das mais fáceis para o atacante. Com dificuldades técnicas, acabou ficando a maior parte do tempo disputando posição com Caio, e muito se criticou na época a falta de atuações convincentes tanto de um quanto de outro. De qualquer modo, o centroavante sempre foi peça importante no grupo de jogadores, e teve participação destacada em alguns momentos marcantes daquela campanha. Entre eles, destaquemos a famigerada Batalha de La Plata, confronto entre o Grêmio e o Estudiantes na fase semifinal que se tornou lendário pelo clima de guerra e violência que tomou conta de tudo antes, durante e depois da partida. César entrou no intervalo daquela partida, em circunstâncias no mínimo inusitadas. Agredido à covardia no caminho para o vestiário, Caio sofreu uma lesão na tíbia e teve que sair do jogo, restando a César encarar no susto um caldeirão como poucas vezes o futebol mundial teve a chance de testemunhar. E se saiu bem o atacante, chegando a fazer o segundo gol do time no empate de 3 a 3, resultado surreal em uma das partidas mais surreais de que se tem notícia.
Mas é claro que nada supera o gol marcado no Olímpico, na segunda partida da decisão contra o Peñarol. As próprias circunstâncias nas quais o agora lendário cabeceio se dá são repletas de dramaticidade - faltando menos de 15 minutos para o fim do jogo, pouco após um gol de empate uruguaio que forçava a decisão em jogo extra, num estádio lotado com mais de 70 mil pessoas e tremendo de ansiedade e expectativa. César, uma vez mais, tinha saído do banco de reservas como esperança de uma solução mágica - e, como sabemos, não decepcionou. A foto que ilustra esse texto congela com eficácia o instante máximo daquela partida: bola alçada na área de qualquer jeito por Renato, César se atirando sobre ela num peixinho oportunista, surpreendendo o zagueiro Montelongo, o goleiro Fernandez e todos que estavam no estádio. Talvez a foto seja tão bela justamente por isso - ela mesma sendo batida no susto, num reflexo instintivo do fotógrafo, capturando uma fração mágica de segundo em um lance que, acredito eu, ninguém estivesse entendendo direito na hora em que se deu. Uma jogada talvez carente de elegância, mas plena de determinação e vontade de vencer. Um gol que deu o título inédito ao Grêmio, e colocou César imediatamente no panteão dos grandes heróis da história tricolor.
Tão definitivo foi o gol de César que, para sermos sinceros, acabou sendo não só o ápice como quase o ocaso de sua carreira. O centroavante foi a Tóquio para a disputa do Mundial Interclubes, mas nem chegou a se fardar para o jogo - numa equipe reforçada por nomes como Mário Sérgio e Paulo Cesar Caju, acabou sobrando na relação e nem no banco ficou na partida decisiva contra o Hamburgo. Relatos vindos do Japão nos falam de um centroavante cabisbaixo, que passeava pelo lobby do hotel carregando um chaveiro escrito "César, O Gol da Libertadores", que ele mesmo havia mandado confeccionar. Um testemunho quase banal, mas capaz de ilustrar a tristeza de uma estrela que perdia sua majestade cedo demais.
César permaneceria no plantel para 1984, mas sem conseguir jamais status de unanimidade dentro do Olímpico. Saiu do Grêmio para defender o Palmeiras, mas teve passagem discreta pelo alviverde paulista - e encerrou sua carreira quase incógnito, defendendo as cores dignas mas pouco competitivas do Pelotas. Fez curso de treinador, mas nunca chegou perto de consolidar uma carreira nas casamatas. E, suprema ironia, chegou a ser anunciado como morto em 1995, numa confusão que antes de ser desfeita gerou até minuto de silêncio em partida oficial no Estádio Olímpico. Avisado pelo filho de que era dado como falecido no RS, o ex-jogador chegou a atender ele mesmo telefonemas de figuras históricas do passado gremista, que tencionavam deixar à família do finado as condolências pela morte inesperada...
Da pessoa que bateu a fotografia, pouco sabemos. Pesquisei bastante, e suspeito que tenha sido o então fotógrafo da ZH Adolfo Alves o autor da imagem, embora não tenha conseguido ser conclusivo a esse respeito. Imagino que material da época, como jornais e revistas, possam esclarecer essa dúvida - e agradeço desde já qualquer ajuda dos leitores no sentido de fazer justiça ao autor da bela e histórica foto. De qualquer maneira, é quase natural que o nome do responsável caia no esquecimento, mesmo que o registro por ele produzido permaneça na memória coletiva de todos os apreciadores de futebol.
Para César, atualmente funcionário público em sua cidade natal, vê-la deve ser uma verdadeira viagem no tempo, um retorno imediato ao instante mais marcante de toda sua carreira como atleta profissional. Um momento nunca igualado, mas capaz de iluminar sozinho toda uma história de vida. E que os dois principais personagens dessa história fiquem tranquilos, cientes do dever cumprido, mesmo que hoje o tempo apague o nome de um e obscureça o restante da história de outro. Pois fizeram muito bem os dois, naquele instante rápido e fugidio, enquanto o resto do mundo olhava sem entender nada. E agora estão juntas, essas duas eficiências, numa foto que durará pela eternidade.
Foto: César, de peixinho, entra para a história do futebol (blog do Leandro Demori).
César Martins de Oliveira nasceu em São João da Barra (RJ), no dia 13 de abril de 1956 - vinte e sete anos, três meses e 15 dias antes do jogo e do gol que o colocariam na história do futebol mundial. Surgiu para o futebol como atacante do América, no qual atuou durante três anos e onde sagrou-se um dos artilheiros do Brasileirão de 1979, dividindo com o cruzeirense Roberto César a marca de 12 gols marcados. Com a bela campanha, César chamou interesse de clubes estrangeiros e, numa época em que transferências não eram tão comuns quanto hoje, assinou contrato com o Benfica, onde disputaria outras três temporadas com razoável destaque. Entre outros feitos, participou duas vezes de campanhas vitoriosas no Campeonato Português, nas temporadas 1980/81 e 1982/1983. Mas em 1983, saudoso de casa, resolveu aceitar a proposta do Grêmio e juntar-se ao grupo que disputaria a Libertadores da América daquele ano.
Não foi, digamos a verdade, uma jornada das mais fáceis para o atacante. Com dificuldades técnicas, acabou ficando a maior parte do tempo disputando posição com Caio, e muito se criticou na época a falta de atuações convincentes tanto de um quanto de outro. De qualquer modo, o centroavante sempre foi peça importante no grupo de jogadores, e teve participação destacada em alguns momentos marcantes daquela campanha. Entre eles, destaquemos a famigerada Batalha de La Plata, confronto entre o Grêmio e o Estudiantes na fase semifinal que se tornou lendário pelo clima de guerra e violência que tomou conta de tudo antes, durante e depois da partida. César entrou no intervalo daquela partida, em circunstâncias no mínimo inusitadas. Agredido à covardia no caminho para o vestiário, Caio sofreu uma lesão na tíbia e teve que sair do jogo, restando a César encarar no susto um caldeirão como poucas vezes o futebol mundial teve a chance de testemunhar. E se saiu bem o atacante, chegando a fazer o segundo gol do time no empate de 3 a 3, resultado surreal em uma das partidas mais surreais de que se tem notícia.
Mas é claro que nada supera o gol marcado no Olímpico, na segunda partida da decisão contra o Peñarol. As próprias circunstâncias nas quais o agora lendário cabeceio se dá são repletas de dramaticidade - faltando menos de 15 minutos para o fim do jogo, pouco após um gol de empate uruguaio que forçava a decisão em jogo extra, num estádio lotado com mais de 70 mil pessoas e tremendo de ansiedade e expectativa. César, uma vez mais, tinha saído do banco de reservas como esperança de uma solução mágica - e, como sabemos, não decepcionou. A foto que ilustra esse texto congela com eficácia o instante máximo daquela partida: bola alçada na área de qualquer jeito por Renato, César se atirando sobre ela num peixinho oportunista, surpreendendo o zagueiro Montelongo, o goleiro Fernandez e todos que estavam no estádio. Talvez a foto seja tão bela justamente por isso - ela mesma sendo batida no susto, num reflexo instintivo do fotógrafo, capturando uma fração mágica de segundo em um lance que, acredito eu, ninguém estivesse entendendo direito na hora em que se deu. Uma jogada talvez carente de elegância, mas plena de determinação e vontade de vencer. Um gol que deu o título inédito ao Grêmio, e colocou César imediatamente no panteão dos grandes heróis da história tricolor.
Tão definitivo foi o gol de César que, para sermos sinceros, acabou sendo não só o ápice como quase o ocaso de sua carreira. O centroavante foi a Tóquio para a disputa do Mundial Interclubes, mas nem chegou a se fardar para o jogo - numa equipe reforçada por nomes como Mário Sérgio e Paulo Cesar Caju, acabou sobrando na relação e nem no banco ficou na partida decisiva contra o Hamburgo. Relatos vindos do Japão nos falam de um centroavante cabisbaixo, que passeava pelo lobby do hotel carregando um chaveiro escrito "César, O Gol da Libertadores", que ele mesmo havia mandado confeccionar. Um testemunho quase banal, mas capaz de ilustrar a tristeza de uma estrela que perdia sua majestade cedo demais.
César permaneceria no plantel para 1984, mas sem conseguir jamais status de unanimidade dentro do Olímpico. Saiu do Grêmio para defender o Palmeiras, mas teve passagem discreta pelo alviverde paulista - e encerrou sua carreira quase incógnito, defendendo as cores dignas mas pouco competitivas do Pelotas. Fez curso de treinador, mas nunca chegou perto de consolidar uma carreira nas casamatas. E, suprema ironia, chegou a ser anunciado como morto em 1995, numa confusão que antes de ser desfeita gerou até minuto de silêncio em partida oficial no Estádio Olímpico. Avisado pelo filho de que era dado como falecido no RS, o ex-jogador chegou a atender ele mesmo telefonemas de figuras históricas do passado gremista, que tencionavam deixar à família do finado as condolências pela morte inesperada...
Da pessoa que bateu a fotografia, pouco sabemos. Pesquisei bastante, e suspeito que tenha sido o então fotógrafo da ZH Adolfo Alves o autor da imagem, embora não tenha conseguido ser conclusivo a esse respeito. Imagino que material da época, como jornais e revistas, possam esclarecer essa dúvida - e agradeço desde já qualquer ajuda dos leitores no sentido de fazer justiça ao autor da bela e histórica foto. De qualquer maneira, é quase natural que o nome do responsável caia no esquecimento, mesmo que o registro por ele produzido permaneça na memória coletiva de todos os apreciadores de futebol.
Para César, atualmente funcionário público em sua cidade natal, vê-la deve ser uma verdadeira viagem no tempo, um retorno imediato ao instante mais marcante de toda sua carreira como atleta profissional. Um momento nunca igualado, mas capaz de iluminar sozinho toda uma história de vida. E que os dois principais personagens dessa história fiquem tranquilos, cientes do dever cumprido, mesmo que hoje o tempo apague o nome de um e obscureça o restante da história de outro. Pois fizeram muito bem os dois, naquele instante rápido e fugidio, enquanto o resto do mundo olhava sem entender nada. E agora estão juntas, essas duas eficiências, numa foto que durará pela eternidade.
Foto: César, de peixinho, entra para a história do futebol (blog do Leandro Demori).
Comentários
Este gol, por tudo que o simboliza, está para a história gremista assim como o de Figueroa está para a colorada: além de romper fronteiras (o Inter rompeu as do RS para o futebol nacional, o Grêmio rompeu as do continental), tem todo o simbolismo (raio de sol na cabeça do chileno, voo espetacular do César). Realmente, é uma foto que merece um texto. E não sabia que o César tinha sido um dos artilheiros do Brasileirão de 1979.
Emocionante mesmo. Parabéns.
detalhe: o Tita declarou certa feita no "jogos pra sempre" do sportv que a esposa dele havia sonhado que o César faria o golo decisivo. Como eram muito amigos, Tita avisou César do sonho da mulher. Na imagem televisiva do golo pode-se ver Tita levando as mãos a cabeça, num gesto incrédulo de quem vê o milagre a sua frente. sensacional, confiram aí a partir dos 40 seg: http://www.youtube.com/watch?v=3U8J_NB7mvk
Em troca, eu fico autorizado a publicar esse mesmo texto no meu blog
fonsecavicente ARROBA gmail PONTO com
Por e-mail combinamos tudo. Abraço.
Tem alguns comentários a respeito nesse artigo aqui:
http://74.125.47.132/search?q=cache:egfrD3sy7yMJ:esporte.uol.com.br/futebol/ultimas/2008/09/09/ult2657u192.jhtm+%22C%C3%A9sar,+o+gremista+imortal,+lamenta+isolamento+no+interior+do+Rio+de+Janeiro%22&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
Coloquei o cache do Google porque a matéria aparece como para assinantes, não sei se abre em qualquer pc...