Quarenta anos antes, o Peru fez o crime
Na semana passada, as pessoas que gostam de futebol tiveram a chance de ver mais uma vez a Argentina participar de um espetáculo repleto de dramatismo. Precisando de uma vitória contra a frágil seleção peruana, os comandados de Maradona sofreram, encararam uma chuva violenta, tomaram gol de empate no finalzinho e só garantiram o 2 a 1 nos descontos da segunda etapa, com um gol oportunista (e em impedimento) do quase-aposentado Palermo. Com esse resultado, aumentam não só as chances dos hermanos irem para a Copa do Mundo, como também a lista de confrontos históricos envolvendo argentinos e peruanos. Todos lembram, claro, da goleada aplicada pelos argentinos na Copa de 1978, um jogo sempre cercado de insinuações de “corpo mole” peruano e tudo o mais. Bem menos lembradas, mas bem mais interessantes na atual conjuntura, são as circunstâncias que envolveram a última vez em que os argentinos não foram ao Mundial – em 1970, ano do Tri brasileiro. Foi a única vez que a Argentina disputou as eliminatórias sem conseguir superá-la – e adivinhem qual seleção foi responsável por fechar o caixão argentino naquela ocasião? Sim, eles mesmos, os quase-algozes do último sábado, nada menos que a seleção peruana de futebol.
Era uma seleção bastante respeitável, a argentina. Contava, entre outros, com os meias Carlos Pachamé (campeão da Libertadores por três anos seguidos com o Estudiantes de La Plata) e Brindisi, os zagueiros Perfumo e Albrecht e o atacante Tarabini. Na casamata, o treinador Adolfo Pedernera, jogador destacado nos anos 40, mas que sofria com a desconfiança da torcida em seu trabalho. A Argentina tinha a supremacia futebolística no continente, com cinco dos seis títulos de Libertadores disputados entre 1964 e 1969 ficando para clubes do país – isso sem contar os Mundiais Interclubes conquistados em 1967 (Racing) e 1968 (Estudiantes). Na época, as eliminatórias sul-americanas eram divididas em grupos, num sistema de ida e volta, e considerando a falta de tradição de seus dois adversários – Bolívia e Peru – a expectativa de todos era para uma classificação sem sobressaltos para a Copa do México.
Mas não foi bem o que se viu. De cara, dois tropeços fora de casa (3x1 contra a Bolívia e 1x0 contra o Peru) criaram um clima de perplexidade em todo o país. Como eram apenas quatro jogos para cada seleção, os argentinos ficavam na obrigação de obterem duas vitórias em casa para a classificação. Com os resultados alternados entre Bolívia e Peru (2x1 para os bolivianos em La Paz e 3x0 para os peruanos em Lima), as duas seleções dividiam a liderança com quatro pontos, e a Argentina tinha a incômoda e surpreendente lanterna com zero. Era uma situação muito incômoda, que não melhorou muito depois do confronto em casa contra os bolivianos. Afinal, embora tenha triunfado, a Argentina ficou num minguado 1 a 0 – assinalado, ao que consta, por meio de um pênalti dos mais duvidosos. Como não havia critérios de desempate além do confronto direto, a seleção albiceleste precisava agora vencer também o Peru para provocar um jogo extra, em território neutro, e aí sim pensar nas passagens aéreas para o México.
E não pensem que a tarefa era fácil, pelo contrário. Treinada pelo brasileiro Didi, a seleção peruana vivia o começo de um período dourado em sua história. Verdade que na zaga o “destaque” era a figura então quase trágica de Héctor Chumpitaz, que fez um gol contra na derrota para os bolivianos e ficou tão “famoso” que até tema de música na Bolívia ele virou. Um herói nacional, mas não exatamente na nação certa... O maestro daquela seleção era o meia-atacante Teofilo “Nene” Cubillas, que depois se consagraria jogando em Portugal e nos EUA e que é considerado até hoje o mais talentoso jogador peruano de todos os tempos. Na época, Cubillas tinha meros vinte anos, mas mesmo assim já era o jogador mais importante do plantel peruano. No gol, a segurança do ágil arqueiro Rubiños, e no ataque o veloz e habilidoso Oswaldo “Cachito” Ramirez completava a lista de destaques da seleção andina. Embora ainda em nítido processo de amadurecimento, aquela geração do futebol peruano já demonstrava grande potencial – e a orgulhosa Argentina teve a chance de comprovar isso, da maneira mais amarga possível.
A partida decisiva do Grupo A das eliminatórias sul-americanas da Copa do México se deu no dia 31 de agosto de 1969, no mítico caldeirão de La Bombonera. Apesar da campanha até então sofrível, os argentinos mantinham a confiança na classificação, qualificando os maus resultados como tropeços circunstanciais e acreditando num placar amplo e consagrador contra os visitantes. Assistindo registros em vídeo do jogo, porém, percebe-se que em momento algum a Argentina teve chances reais de construir o placar necessário para seguir em frente.
Todos os gols foram marcados no segundo tempo – na primeira metade do jogo, consta que o goleiro Rubiños teve uma atuação mágica, defendendo todos os arremates dos donos da casa e garantindo a igualdade sem gols. O Peru abriu o placar logo aos sete minutos do tempo final, com um belo gol de Ramirez em chute cruzado. Várias situações para ampliar foram criadas pelo Peru antes que Albrecht, cobrando pênalti meio duvidoso com uma à época futurista paradinha, empatasse o jogo para os argentinos. Eram 33 minutos da etapa final, e a Argentina tinha doze minutos para a virada. Esperança que logo viraria poeira: dois minutos depois do empate, Ramirez é lançado no contra-ataque por Cubillas e toca na saída de Cejas. O 2 a 1 peruano calou a Bombonera, e fez o gol de empate de Rendo, marcado ao apagar das luzes, parecer quase irrelevante. O zagueiro peruano La Torre ainda seria expulso, por assumir a cobrança de uma falta e depois afastar-se do lance sem dar o chute, mas naquele momento não fazia mais diferença. Com o 2 a 2, o Peru conquistou o que era seu maior feito futebolístico até então – enquanto a Argentina sentia, pela última vez até os dias de hoje, o gosto amargo de ficar de fora da festa da Copa do Mundo.
O Peru fez bom papel na Copa de 70, chegando até as quartas, onde tombou diante do campeão Brasil. Em 1975, chegaria ao ápice, conquistando a Copa América. Pena que, atualmente, as pessoas prefiram lembrar histórias mal contadas de subornos e corpo-mole, quando o futebol peruano tem coisas muito mais edificantes em seu passado. Por pouco, mesmo com um time muito inferior ao dos seus tempos de glória, não se repete a história de quarenta anos atrás. Sorte da Argentina, que conseguiu uma importante vitória na base da mística e do dramatismo. As eliminatórias de 2009 terminam no meio da semana – vamos ver se o enredo será trágico como o de 1969, ou se terá um final feliz com Dieguito pegando o avião rumo à África do Sul. Emoção, de qualquer modo, não há de faltar.
Foto: La Bombonera, salão de festas peruano (site oficial da Fifa)
Era uma seleção bastante respeitável, a argentina. Contava, entre outros, com os meias Carlos Pachamé (campeão da Libertadores por três anos seguidos com o Estudiantes de La Plata) e Brindisi, os zagueiros Perfumo e Albrecht e o atacante Tarabini. Na casamata, o treinador Adolfo Pedernera, jogador destacado nos anos 40, mas que sofria com a desconfiança da torcida em seu trabalho. A Argentina tinha a supremacia futebolística no continente, com cinco dos seis títulos de Libertadores disputados entre 1964 e 1969 ficando para clubes do país – isso sem contar os Mundiais Interclubes conquistados em 1967 (Racing) e 1968 (Estudiantes). Na época, as eliminatórias sul-americanas eram divididas em grupos, num sistema de ida e volta, e considerando a falta de tradição de seus dois adversários – Bolívia e Peru – a expectativa de todos era para uma classificação sem sobressaltos para a Copa do México.
Mas não foi bem o que se viu. De cara, dois tropeços fora de casa (3x1 contra a Bolívia e 1x0 contra o Peru) criaram um clima de perplexidade em todo o país. Como eram apenas quatro jogos para cada seleção, os argentinos ficavam na obrigação de obterem duas vitórias em casa para a classificação. Com os resultados alternados entre Bolívia e Peru (2x1 para os bolivianos em La Paz e 3x0 para os peruanos em Lima), as duas seleções dividiam a liderança com quatro pontos, e a Argentina tinha a incômoda e surpreendente lanterna com zero. Era uma situação muito incômoda, que não melhorou muito depois do confronto em casa contra os bolivianos. Afinal, embora tenha triunfado, a Argentina ficou num minguado 1 a 0 – assinalado, ao que consta, por meio de um pênalti dos mais duvidosos. Como não havia critérios de desempate além do confronto direto, a seleção albiceleste precisava agora vencer também o Peru para provocar um jogo extra, em território neutro, e aí sim pensar nas passagens aéreas para o México.
E não pensem que a tarefa era fácil, pelo contrário. Treinada pelo brasileiro Didi, a seleção peruana vivia o começo de um período dourado em sua história. Verdade que na zaga o “destaque” era a figura então quase trágica de Héctor Chumpitaz, que fez um gol contra na derrota para os bolivianos e ficou tão “famoso” que até tema de música na Bolívia ele virou. Um herói nacional, mas não exatamente na nação certa... O maestro daquela seleção era o meia-atacante Teofilo “Nene” Cubillas, que depois se consagraria jogando em Portugal e nos EUA e que é considerado até hoje o mais talentoso jogador peruano de todos os tempos. Na época, Cubillas tinha meros vinte anos, mas mesmo assim já era o jogador mais importante do plantel peruano. No gol, a segurança do ágil arqueiro Rubiños, e no ataque o veloz e habilidoso Oswaldo “Cachito” Ramirez completava a lista de destaques da seleção andina. Embora ainda em nítido processo de amadurecimento, aquela geração do futebol peruano já demonstrava grande potencial – e a orgulhosa Argentina teve a chance de comprovar isso, da maneira mais amarga possível.
A partida decisiva do Grupo A das eliminatórias sul-americanas da Copa do México se deu no dia 31 de agosto de 1969, no mítico caldeirão de La Bombonera. Apesar da campanha até então sofrível, os argentinos mantinham a confiança na classificação, qualificando os maus resultados como tropeços circunstanciais e acreditando num placar amplo e consagrador contra os visitantes. Assistindo registros em vídeo do jogo, porém, percebe-se que em momento algum a Argentina teve chances reais de construir o placar necessário para seguir em frente.
Todos os gols foram marcados no segundo tempo – na primeira metade do jogo, consta que o goleiro Rubiños teve uma atuação mágica, defendendo todos os arremates dos donos da casa e garantindo a igualdade sem gols. O Peru abriu o placar logo aos sete minutos do tempo final, com um belo gol de Ramirez em chute cruzado. Várias situações para ampliar foram criadas pelo Peru antes que Albrecht, cobrando pênalti meio duvidoso com uma à época futurista paradinha, empatasse o jogo para os argentinos. Eram 33 minutos da etapa final, e a Argentina tinha doze minutos para a virada. Esperança que logo viraria poeira: dois minutos depois do empate, Ramirez é lançado no contra-ataque por Cubillas e toca na saída de Cejas. O 2 a 1 peruano calou a Bombonera, e fez o gol de empate de Rendo, marcado ao apagar das luzes, parecer quase irrelevante. O zagueiro peruano La Torre ainda seria expulso, por assumir a cobrança de uma falta e depois afastar-se do lance sem dar o chute, mas naquele momento não fazia mais diferença. Com o 2 a 2, o Peru conquistou o que era seu maior feito futebolístico até então – enquanto a Argentina sentia, pela última vez até os dias de hoje, o gosto amargo de ficar de fora da festa da Copa do Mundo.
O Peru fez bom papel na Copa de 70, chegando até as quartas, onde tombou diante do campeão Brasil. Em 1975, chegaria ao ápice, conquistando a Copa América. Pena que, atualmente, as pessoas prefiram lembrar histórias mal contadas de subornos e corpo-mole, quando o futebol peruano tem coisas muito mais edificantes em seu passado. Por pouco, mesmo com um time muito inferior ao dos seus tempos de glória, não se repete a história de quarenta anos atrás. Sorte da Argentina, que conseguiu uma importante vitória na base da mística e do dramatismo. As eliminatórias de 2009 terminam no meio da semana – vamos ver se o enredo será trágico como o de 1969, ou se terá um final feliz com Dieguito pegando o avião rumo à África do Sul. Emoção, de qualquer modo, não há de faltar.
Foto: La Bombonera, salão de festas peruano (site oficial da Fifa)
Comentários
Aquela geração peruana foi a quatro copas seguidas, de 1970 a 1982, sempre com Cubillas comandando o carreto. Melhor geração da história do país.
Nesta quarta, vamos ter Uruguai x Argentina e o bicho vai pegar.
será que é por isso que a Bombonera não sedia mais jogos da seleção argentina?