No Maranhão, o futebol perdeu de goleada

Bom, a essa altura do campeonato já se falou tanto na situação escandalosa do Campeonato Maranhense da Segunda Divisão que o assunto já se tornou batido. Para quem ainda não sabe, o campeonato em questão está suspenso, depois das circunstâncias no mínimo estranhas envolvendo os dois jogos decisivos do certame, ocorridos na última quinta-feira. Resumindo, o Viana venceu o Chapadinha por insólitos 11 a 0, eliminando assim o tradicional Moto Club, que venceu o Santa Quitéria “apenas” por 5 a 1 e foi eliminado no saldo de gols. Como nove dos onze gols do Viana foram marcados nos últimos dez minutos de jogo, ficou claro demais que a coisa de natural não tinha nada, e agora o Brasil inteiro noticia em tons berrantes a marmelada na Série B do Maranhense. Um evento bizarro, sem dúvida – mas que, analisado com mais cuidado e menos sensacionalismo, ajuda a escancarar a situação deplorável que há tempos vai corroendo o futebol do Maranhão.

Para entendermos bem a situação e fugirmos um pouco da cobertura espetaculosa feita pela maioria dos veículos que tratam do caso, convém retornarmos logo ao início da confusão. Mais precisamente, ao Campeonato Maranhense da Primeira Divisão, disputado no primeiro semestre deste ano. Na ponta de cima, o campeão foi o JV Lideral, em seu primeiro ano de primeira divisão. Enfrentando o Sampaio Corrêa nas finais, o jovem clube conquistou a taça pelos critérios de desempate. Na ponta de baixo, sim, é que se deu o problema. O Moto Club, 24 vezes campeão estadual, participante da Série D do Brasileirão e clube de grande torcida em todo o Maranhão, foi rebaixado para a segundona de seu estado, ao lado do Itinga. Uma tragédia, ainda mais considerando que o Papão havia sido campeão maranhense no ano anterior.

Em princípio, o rebaixamento valeria para a temporada 2010 do Maranhense. Mas a Federação achou uma brecha para, digamos, acomodar a situação. Como a disputa da segundona só ocorreria no segundo semestre, a entidade máxima do futebol maranhense decidiu que Moto e Itinga jogariam a Série B já em 2009 - para “simplificar” as coisas, sabem como é. Essa decisão, como se pode imaginar, provocou grande inconformidade entre os demais clubes – afinal, não houve convocação dos associados e ninguém foi consultado a respeito da generosa medida. Em protesto, quatro clubes desistiram de disputar o certame, mas mesmo assim o Papão foi mantido. Como o Itinga tinha dívidas com a Federação, foi eliminado da disputa da Série B. E eis que o Moto Club foi colocado para disputar, junto a meros três clubes (Viana, Chapadinha e Santa Quitéria) a segunda divisão estadual – no mesmo ano de sua queda. Uma situação difícil de engolir, que gerou um mal-estar que foi se agravando à medida que a Segundona avançava rumo a seu final. Na rodada decisiva, o Santa Quitéria era o time mais relaxado. Vencedor do primeiro turno, o time já tinha garantido a vaga para a divisão principal em 2010, naquela que será sua terceira participação entre os grandes do Estado. Com essa folga toda, a Raposa do Baixo Parnaíba permitiu-se algumas extravagâncias – a principal delas, inscrever entre seus atletas o prefeito da cidade e presidente de honra do Santa Quitéria, Manin Real, 52 anos. O mandatário não só consta entre os atletas do clube, como inclusive jogou os primeiros dez minutos da partida final contra o Moto Clube, na mesma fatídica rodada de Viana x Chapadinha. Uma atitude que, por si só, dá sinais da mentalidade amadorística e das ligações escusas com a política local que assolam o futebol do Maranhão.

Todos os demais times ainda estavam vivos, disputando a segunda vaga. O Viana tinha o mesmo número de pontos do Moto, mas dois gols a mais no saldo de gols, zero contra menos dois. Com isso, o Papão era obrigado a vencer com certa folga o Santa Quitéria para retornar à elite estadual. O Chapadinha era líder pelo saldo de gols (2), e tinha boas condições de conquistar o acesso – não tendo, portanto, motivos para entrar de corpo mole antes dos dilatados placares se desenharem. Consta até que os dirigentes do Galo da Chapada promoveram uma mobilização especial para o jogo decisivo, regularizando os salários dos atletas e bancando a viagem um dia antes até Viana, para que os jogadores pudessem repousar antes da partida.

Os dois jogos foram, a princípio, simultâneos – embora, é claro, o atraso no começo das partidas e nas voltas para o segundo tempo tenha sido considerável. No Raposão, depois de dez minutos de puro brilhantismo do polivalente Manin Real, só deu Moto Club, que chegou ao intervalo com dilatados 3 a 0. Informados da goleada que se desenhava em Santa Quitéria, da presença do prefeito da cidade entre os jogadores em campo e dos quase vinte minutos de atraso na partida, o desânimo tomou conta do Estádio Daniel Filho. Políticos ligados tanto ao Chapadinha quanto ao Viana foram vistos confabulando no intervalo do jogo, e o desalento era visível nos jogadores de ambos os times. Depois de quarenta minutos de intervalo, o jogo foi retomado, e o placar parcial de 2 a 0 ia classificando o Viana no saldo de gols – até que uma chuva de pênaltis começou a ocorrer no Raposão, e logo o Moto Club assinalava 5 a 1, passando a frente do Viana nos critérios de desempate.

Foi quando a coisa atingiu de fato o absurdo. O Chapadinha sumiu em campo, e o Viana começou a empilhar gols. Foram nove em pouco mais de nove minutos, assinalando o dilatadíssimo 11 a 0 e a classificação do Viana para a primeira divisão maranhense. O 5 a 1 do Moto Club, ainda que chamativo, de nada valeu. E poderia ter sido mais, em ambos os jogos: o Viana teve um gol anulado por impedimento, e o Papão desperdiçou mais um pênalti, aos 47 minutos do segundo tempo. O campeonato foi suspenso, a imprensa caiu em cima da curiosa história, e agora todos são quase unânimes em jogar pedras no Chapadinha e na sua atitude de entregar os pontos e deixar o Viana ser campeão. Ainda que os dirigentes jurem não ter havido uma decisão coordenada no sentido de uma marmelada, a opinião de que o time perdedor se “vendeu” é generalizada. Embora, curiosamente, várias pessoas ligadas ao futebol maranhense aceitem e até aprovem a conduta do Galo da Chapada, o que para nós que vemos com os olhos da metrópole pode parecer um tanto curioso.

Pessoalmente, embora jamais vá apoiar qualquer atitude que deponha contra a lisura do futebol, creio que entendo bem os motivos dos jogadores do Chapadinha. São atletas que ganham salários irrisórios, que investem dinheiro do próprio bolso na compra e manutenção de fardamentos e acessórios, que vão de bicicleta para os treinos e vivenciam todos os dias a realidade de um futebol tomado pela desorganização, pelo personalismo e pela absoluta falta de recursos e perspectivas. Jogadores que aceitaram jogar um campeonato que já começou manchado pelo descumprimento das regras – e que foram levados a achar, ainda dentro do campo, que todos os seus esforços e mobilização eram em vão. Homens que encaram todo o tipo de dificuldade pelo prazer de jogar futebol, e que se julgaram participantes de um circo no qual o esporte ficava em segundo plano. Desiludidos e magoados, partiram para o protesto que lhes era possível: o corpo mole. E, com essa atitude, trouxeram à luz toda a teia de desmandos e absurdos que vai corroendo o futebol de todo um estado – e, porque não dizer, de uma região inteira do país. Não me sinto ofendido pela marmelada da Série B do Maranhense – acho até que, a seu modo, ela pode prestar um bom serviço ao futebol. Ou pelo menos mostrar que, mesmo nesses tempos tão cínicos que vivemos, brincar com a paixão dos outros continua não sendo a melhor ideia.

Foto: Público prestigia em peso as confusões do Maranhense (Globo Esporte).

Comentários

Ponso disse…
Mas que texto fabuloso.
Vicente Fonseca disse…
http://video.globo.com/Videos/Player/Esportes/0,,GIM1142661-7824-ESCANDALO+ARMACAO+ENTRE+VIANA+E+CHAPADINHA+IMPEDE+MOTO+CLUB+DE+RETORNAR+A+SERIE+A+DO+MA,00.html

Acima, os gols. Fica evidente o descaso dos jogadores do Chapadinha a partir do 3 a 0. Nunca vi postura tão escancarada num jogo tido como profissional.

De início eu condenava os dois times, mas conhecendo os detalhes da história toda fica evidente que é uma resposta a um absurdo ainda maior. E fica a prova: por mais que dirigentes mal-intencionados queiram armar resultados, os jogadores em campo podem pôr tudo por água abaixo, se quiserem. Foi a tarde onde o coronelismo no futebol maranhense foi vencido.

E esse presidente do Moto Club é igual ao Ronaldo, ex-goleiro do Corinthians!
Bah, isso tudo é no Maranhão... logo logo então vão chegar no culpado: Zé Sarney!!1
No 5º ou no 6º gol, o marcador vai tri molenga pra bola e mesmo assim desarma o atacante!!!! Depois teve que passar a bola de volta... q bizarro...
Vicente Fonseca disse…
É, os lances são absolutamente bizarros. Tem um que o cara perde o gol ainda.
Baita texto o do Natusch, ressalta bem a situação toda do Campeonato Maranhense.

Li várias coisas a respeito desse jogo, que constam no texto, e pra mim não restam dúvidas que os jogadores se entregaram por protesto. Os dois zagueiros afirmaram isso, que deixaram a bola passar por eles numa boa. E os lances dos gols deixam muito claro que eles pararam de correr por vontade própria.

Mesmo que a imprensa caia de pau em cima e tente mostrar um lado de inconformismo da cidade quanto à entrega dos jogadores, tem muita gente que concordou com a atitude dos mesmos.

É um candidato forte a budum do ano.
Vicente Fonseca disse…
Concorre a jogo do ano também. E várias outras categorias.

Aliás, não sei vocês, mas já estou quebrando a cabeça para escolher meus premiados de dezembro.