Na entrega das faixas, um campeão moral

Como a essa altura do campeonato todo mundo já sabe, Mário Sérgio é o novo treinador do Internacional. Nosso chapa Adenor Bacchi não suportou a pressão dos últimos resultados e da forte rejeição de sua própria torcida e foi convidado a se retirar. Na falta de opções mais renomadas, Mário Sérgio assume temporariamente o comando do colorado – afinal, tudo indica que no início de 2010 o Luxemburgo vai estar livre e, estando o Inter na Libertadores, a vaga é dele sem muito espaço para questionamentos. A torcida colorada ficou de modo geral satisfeita com a saída de Tite, mas reprovou a contratação do Vesgo, o que qualquer rápida visita a qualquer fórum de discussão relacionado ao Beira Rio pode comprovar. Seja como for, o homem tem como jogador uma história fortemente ligada à dupla Gre-Nal – e com um evento em especial que entrou para a história, por mais de um motivo. Em 1984, o Vesgo regressava ao Internacional depois de alguns anos de ausência, em uma contratação plena de bons auspícios. Afinal, além de ter levantado a taça de campeão gaúcho em 1981, o homem tinha sido figura proeminente em um dos títulos mais marcantes da história colorada: o tricampeonato brasileiro de 1979, o único conquistado de forma invicta em toda a história da competição. Desnecessário dizer, portanto, que a contratação do jogador foi muito bem vinda – e ele foi um dos pilares de um time vencedor, que conquistaria o Gauchão daquele ano e seria a base da seleção olímpica, cedendo 11 dos 17 atletas que participaram dos jogos de Los Angeles. O próprio Mário Sérgio não foi convocado, mas enfim, um mero detalhe. Um detalhe curioso, no entanto, referia-se ao clube anterior do meio-campo barbudo – nada menos que o Grêmio campeão do Mundo, clube que no fim do ano anterior havia ido a Tóquio vencer o Hamburgo e conquistar a maior glória de sua história de 106 anos. O desempenho dele nesse jogo foi decisivo, de forma que ele se tornou figura lendária de modo quase imediato, o que encheu seu retorno ao maior rival tricolor de um ar de surpresa e estranhamento. E colocou o atleta de 33 no centro de um Gre-Nal cercado de polêmica e provocação.

Enquanto o Grêmio estava em Tóquio pintando a terra de azul, o Internacional estava garantindo a tonalidade vermelha no Estado, ganhando o Campeonato Gaúcho com inquestionável superioridade. E o zagueiro Mauro Galvão, na época um jovem rapaz que ia consolidando uma carreira brilhante nas zagas do Brasil e do mundo, deixou-se levar pela emoção e, durante a festa do título regional, soltou o verbo. Segundo ele, de nada servia o Grêmio conquistar o Mundial Interclubes, já que não era capaz de mandar na própria casa – quem dava as cartas no Rio Grande era o Inter, no fim das contas. A torcida do Internacional deve ter, como todas as torcidas nesse tipo de situação, entrado em delírio com a provocação. Quem não gostou muito foi Renato Portaluppi, ponteiro-direito campeão do mundo com o Grêmio, craque da bola e notório criador de caso dentro e fora do campo. Indignado com a bravata de Galvão, Renato pediu pessoalmente a Fábio Koff, presidente do Grêmio, que marcasse um Gre-Nal de tira-teima, para deixar claro qual das duas cores mandava no Rio Grande no fim das contas. Como pretexto, a entrega das faixas, tanto as que o Grêmio merecia pelo título mundial quanto as que cabiam ao Internacional pela hegemonia estadual. Consta que Koff hesitou, temendo que uma eventual vitória colorada fosse uma mancha para o maior título tricolor. Mas Renato estava obcecado com a ideia, e conseguiu convencer o presidente gremista. Sabe-se lá com quais argumentos, Koff convenceu também os dirigentes colorados a embarcarem nessa canoa – e o clássico foi marcado para 26 de janeiro de 1984, uma quinta-feira, em um Olímpico pulsante e cheio de expectativa.Imaginem, então, a situação de Mário Sérgio. Menos de dois meses depois de ter conquistado junto ao Tricolor o título mais significativo da história do clube e de sua própria carreira pessoal, participaria da entrega das faixas, vestindo as cores do maior rival, com o qual tinha igualmente uma história densa e significativa. Era, convenhamos, uma saia justa e das mais desconfortáveis. E o Vesgo lidou com a situação com grande tranquilidade e presença de espírito, como convém a um grande jogador e profissional. Cumprimentou sorridente os ex-companheiros, colocou as faixas neles e recebeu ele mesmo a faixa de campeão do mundo, entregue pelo capitão gremista De León. Vestiu a faixa sobre o uniforme vermelho, e depois posou para algumas fotos, encarando a situação do melhor modo possível. A imagem entrou para a história: Mário Sérgio, vestindo o vermelho do Internacional, carregando com respeito, mas meio sem jeito a faixa pelo título conquistado pouco antes pelo Grêmio. Uma foto que eternizou não só um dos muitos momentos pitorescos que apenas o futebol pode trazer, mas também a ligação profunda do Vesgo com os dois maiores clubes do Rio Grande do Sul. Um gesto de grandeza, digno de um grande campeão, de fato e de direito.

No jogo em si, a vitória foi tricolor, com um resultado de 4 x 2 para os donos da casa. No primeiro tempo, o Inter foi superior, e chegou a estar na frente do placar - mas na segunda etapa o Grêmio tomou as rédeas do jogo, e acabou consolidando o um tanto dilatado placar final, com direito a gol de Renato, que com sua sede de desforra incentivou a realização da partida. Consta que o jogo foi bonito, cheio de chances de gol e de bastante lealdade de ambos os lados – um dia ainda dou um jeito de arranjar um DVD dessa partida, se é que ela foi transmitida ao vivo na época. Deve ter sido de fato um confronto dos mais interessantes – embora, com certeza, a sua lembrança não seja das mais agradáveis para o lado vermelho do futebol da Capital. Para Mário Sérgio, o agora treinador colorado, tenho certeza que foi inesquecível, por uma série de motivos. E talvez devesse servir para que os torcedores que agora criticam a sua escolha tivessem, se não aprovação, pelo menos um pouco mais de boa vontade com o craque do passado. Afinal, mesmo em um momento difícil e delicado, o velho jogador deu uma bela demonstração de civilidade e profissionalismo, além de ter respeitado ao mesmo tempo as duas equipes que deram a ele as maiores conquistas de sua carreira. Quantos jogadores podem alegar o mesmo? De gerenciar momentos de crise, como vimos, o homem entende – vai saber dar conta de dois meses na casamata do Internacional, tenho certeza.

Fotos: Inter tetra gaúcho de 1984 (Faxinal É Inter); Mário Sérgio com a camisa colorada um mês depois de ganhar o Mundial pelo Grêmio (Grêmio 1983).

Comentários

Prestes disse…
Muito massa essa história!
Vicente Fonseca disse…
Grande história, merecia mesmo ser recuperada.

Se eu não tivess nove meses de vida na época, seria um dos Gre-Nais mais nervosos da minha vida. Imaginem correr o risco de ver as faixas do Mundial carimbadas pelo Inter???

Renato é louco. Sorte nossa, gremistas.
Saulo disse…
Gostei muito dessa história.
Unknown disse…
QUEM, hoje, seria capaz de um acordo desses???
um presidente conversar com outro, AILIGAM pro noveletto? NOT!
Vicente Fonseca disse…
Quem era o presidente do Inter àquela época?
Lourenço disse…
Das poucas coisas que invejo do futebol passado é jogador de barba e de bigode. Muito mais personalidade. Mário Sérgio só podia usar barba, com a autoconfiança e capacidade que tinha.
Vicente Fonseca disse…
É por isso que até hoje respeito o Valdir, atacante de Vasco e Atlético-MG dos anos 90. Hoje em dia o máximo que se vê é um cavanhaque ou uma frescura no cabelo.
Paulo Finatto disse…
O presidente colorado em 1984 era Roberto Borba, que substituía Arthur Dallegrave.

O Mário Sérgio é um dos poucos jogadores, na história da dupla gre-nal, ainda querido pelos dois clubes. O Batista, por exemplo, dá pra reparar que ainda existe uma mágoa no Beira-Rio por ele ter ido para o rival lá nos anos 80.
Vicente Fonseca disse…
E Koff estava no fim de seu mandato, já que o presidente gremista em 1984, o do vice da Libertadores, foi Alberto Galia - vice-de-futebol do biênio vitorioso 1982/83.
natusch disse…
E Koff estava no fim de seu mandato, já que o presidente gremista em 1984, o do vice da Libertadores, foi Alberto Galia - vice-de-futebol do biênio vitorioso 1982/83.

Uma conduta muito apreciada pelo Koff, pelo visto, já que foi a mesma coisa na sucessão dele pelo Cacalo - que foi um grande vice de futebol, mas como presidente só fez queimar o próprio filme.

Uma coisa: pesquisei por horas enquanto redigia o artigo, mas fui incapaz de descobrir quem marcou os dois gols colorados no Gre-Nal das faixas. Será que alguém teria como passar essa informação?
Vicente Fonseca disse…
Gols do Gre-Nal:

GRÊMIO: Renato, Osvaldo, Caio e Paulo César.

INTER: Bonamigo (contra) e Ruben Paz.

Fonte: revista Placar - "Os Grandes Clássicos", maio de 2005.
natusch disse…
Excelente, professor. Prova que nem tudo se acha fácil na Internet... Obrigado! Deveria ter me ligado de perguntá-lo antes =P
Vicente Fonseca disse…
Feito, mestre :)

Mas desafio mesmo é desvendar quem são os 11 daquele poster do Inter ali em cima. Reconheci apenas Mário Sérgio, Luís Carlos Winck e Mauro Galvão.
Paulo Finatto disse…
Identifico mais dois: o goleiro Benítez e o último da direita, de pé, o zagueiro André Luís (aquele mesmo que depois foi técnico do São José).
Prestes disse…
O Alemãozinho de pé ali parece o Ademir Kaefer.

E aquele negro agachado ao lado do Mário Sérgio parece o Bira Burro.

Mas não sei se ele jogava no Inter ainda em 84.
Prestes disse…
O barbudo agachado é o KITA.
Prestes disse…
E o barbudo de pé é o Mauro Pastor.
Prestes disse…
O primeiro agachado não é o Dunga não??
Prestes disse…
Não é o Bira, é o Rubem Paz!

Temos agachados então:

Dunga (?), Mauro Galvão, Kita, Rubem Paz e Mário Sérgio.
Prestes disse…
É o Winck ali embaixo, o primeiro e não o Dunga??

Se for, não sei qm são os dois primeriros de cima.
Vicente Fonseca disse…
Pra mim, o primeiro abaixado é o Winck.
Vicente Fonseca disse…
Por alguns instantes, achei que o primeiro de pé era o Branco, mas ele era do Fluminense em 1984.
luís felipe disse…
Mário Sérgio disse na coletiva ontem que não colocou as faixas nos jogadores do Grêmio, por RESPEITO AO CLUBE.

então os dirigentes da época não tinham respeito ao Inter?
Vicente Fonseca disse…
O que eu entendi é que ele não vestiu a faixa de campeão do mundo de 1983 por respeito ao Inter.
natusch disse…
Exatamente. Inclusive esse é um dado errado que passou batido no artigo: Mário Sérgio não chegou a vestir a faixa de campeão do mundo, apenas a exibiu para fotos como a que ilustra o artigo. Falha minha, que fui "enfeitar" o texto e acabei faltando com a verdade. Minhas escusas, que me sirva de lição.

Pessoalmente, acho que a conduta dele em todo o incidente de 1984 foi ótima e digna de muito respeito. Não que se possa dizer o mesmo de algumas entrevistas recentes do homem...