Um guri de camiseta do Inter
Esses dias, eu estava relembrando os meus primórdios como torcedor de futebol. Sou gremista desde o berço, por influência do meu saudoso pai, e desde muito cedo acompanhei as peripécias do clube pelos gramados da vida. Foi uma boa época para ser um torcedor mirim do Grêmio: o mundial de 1983 era um passado bem pouco distante, a hegemonia gaúcha era toda tricolor, e na segunda metade dos anos 80 uma série de figurinhas carimbadas (tipo aquelas dos álbuns da Abril, lembram?) vestia as cores do Grêmio. Lembro que por um tempo eu quis ser goleiro de futebol graças ao Mazaropi, e um dos melhores presentes de natal que já ganhei foi o fardamento completo de goleiro daquela época – que infelizmente se perdeu nas cestas de roupa suja do passado, mas enfim, eu na época achei o máximo. Tinha o Valdo, craque da bola que foi negociado com o Benfica; Jorge Veras, o homem que apavorava Taffarel nos Gre-Nais; Cuca, o maestro da Copa do Brasil; Alfinete, lateral direito que hoje estaria na Seleção, tal a nossa carência no setor; Lima, o matador, que empilhava gols como se não houvesse amanhã; e por aí vai. Era bom ser um piá gremista naqueles tempos, acreditem.
Ser um guri colorado, ao contrário, não devia ser lá muito fácil. Lembro que um dos meus colegas de escola era um moleque chamado Alexandre – um mulatinho magro, tímido e de voz baixa, que raramente se destacava entre nós por qualquer motivo, a não ser às vezes aparecer em aula usando uma camiseta do Internacional. Era um gesto de corajosa ousadia, naqueles idos de 1989 ou 1990: ir para a escola vestido de Internacional, a despeito de todas as dificuldades que o clube vivia, todos os títulos que batiam na trave e não se concretizavam, e alheio à toda flauta de jovens gremistas cheios de títulos. As maiores glórias coloradas já datavam de mais de década – e como todos os que eram crianças na época podem comprovar, uma década é quase um milhão de anos, na nossa concepção toda particular de passagem do tempo. Em resumo, para nós ser um gremista era ser um eterno vencedor, e ser um colorado era ter um compromisso solene e eterno com o fracasso. Dá para imaginar, portanto, o que esse jovem Alexandre deve ter ouvido e suportado naqueles dias de virada de década, sempre com um ar humilde no rosto e a camiseta do Internacional vestida como em um apaixonado desafio.
Lembro vagamente de uma ocasião em especial. Se bem recordo, foi no início do ano letivo de 1989, depois do Inter perder para o Bahia a final do Brasileirão. Eu estive na praia durante esse período; assisti pela TV o colorado eliminar o Grêmio no Gre-Nal do Século, e tive a chance de vibrar como um secador juvenil a derrota final do Inter diante de Bobô e Cia. O assunto ainda estava vivo quando as aulas voltaram, evidentemente; e logo nos primeiros dias o Alexandre me aparece, sem medo de ser feliz, vestindo de modo animado uma camiseta do colorado. Óbvio que nós, gremistas derrotados, mas ainda assim triunfantes, caímos em cima dele sem dó, debochando de todos os modos daquela vítima que vinha sorridente e uniformizada para o sacrifício da flauta. E o Alexandre, que nunca se alterava muito com as provocações, encarou tudo com serenidade, dizendo a certa altura (e eu me lembro disso como se fosse hoje): “não tem problema, perdemos sim, mas meu pai me disse que um dia a gente volta a ser campeão”.
Moleques inconsequentes que éramos, continuamos rindo dele naquele dia – mas hoje, uns vinte anos mais velho e um pouquinho mais sábio do que naqueles dias, vejo finalmente que o pai do Alexandre estava coberto de razão. Pois, o que vemos nós hoje? Um Internacional que está sempre na luta pelas conquistas, com uma Libertadores e Mundial que pertencem a um passado nem um pouco distante, que empilha ídolos e que atualmente vai com fortes condições rumo à conquista de um Brasileirão depois de trinta anos na fila. O Grêmio, por sua vez, bate na trave a todo o momento, amargou recentemente uma segunda passagem pela famigerada Segundona, lembra das glórias internacionais como algo que aconteceu na Idade da Pedra Lascada e conta nos dedos da mão os ídolos de sua história recente. Enquanto o Taffarel foi campeão do mundo, virou empresário de jogadores e enche o bolso de dinheiro, o Lima fracassou no Benfica, teve um affair com a senhora do mercadinho do lado da minha casa (é sério!) e hoje mora no Laranjal... E hoje, nos colégios e escolas de primeiro grau do Rio Grande e além, ser colorado deve ser uma beleza, enquanto vestir a camiseta tricolor não chega a ser ousadia, mas garante algum incômodo para qualquer moleque gremista por aí. É engraçado isso, perceber como as coisas são mesmo cíclicas em tudo na vida...
Imagino ser bem possível que hoje o Alexandre que conheci moleque seja um adulto com a vida estabilizada, talvez casado, talvez com filhos na escola, coloradinhos que usam com orgulho o uniforme vermelho e branco do time que herdaram do pai. Se ele ainda lembra das palavras do pai, deve ser grato por elas, e duvido que se arrependa dos dias em que era um ousado piá que vestia a camisa colorada sem medo do resto do mundo. Da minha parte, a vida está bem confusa, não tenho qualquer estabilidade e, até onde sei, não tenho nenhum filho por aí; mas se eu tivesse um, e ele fosse à escola, eu o incentivaria a ir usando o uniforme tricolor, sem medo – e caso o Inter vença esse Brasileirão, eu roubaria para mim as palavras do pai do Alexandre e diria para ele: calma, moleque, um dia a gente volta a levantar taças por aí. Porque tudo é cíclico, tudo que vai acaba voltando, e essa é uma das grandes belezas de tudo – do futebol, e da vida.
* Igor Natusch, autor deste texto, estreia sua coluna semanal Quero e Vale Quatro, onde escreverá crônicas e reportagens todas as terças-feiras aqui no Carta na Manga.
Ser um guri colorado, ao contrário, não devia ser lá muito fácil. Lembro que um dos meus colegas de escola era um moleque chamado Alexandre – um mulatinho magro, tímido e de voz baixa, que raramente se destacava entre nós por qualquer motivo, a não ser às vezes aparecer em aula usando uma camiseta do Internacional. Era um gesto de corajosa ousadia, naqueles idos de 1989 ou 1990: ir para a escola vestido de Internacional, a despeito de todas as dificuldades que o clube vivia, todos os títulos que batiam na trave e não se concretizavam, e alheio à toda flauta de jovens gremistas cheios de títulos. As maiores glórias coloradas já datavam de mais de década – e como todos os que eram crianças na época podem comprovar, uma década é quase um milhão de anos, na nossa concepção toda particular de passagem do tempo. Em resumo, para nós ser um gremista era ser um eterno vencedor, e ser um colorado era ter um compromisso solene e eterno com o fracasso. Dá para imaginar, portanto, o que esse jovem Alexandre deve ter ouvido e suportado naqueles dias de virada de década, sempre com um ar humilde no rosto e a camiseta do Internacional vestida como em um apaixonado desafio.
Lembro vagamente de uma ocasião em especial. Se bem recordo, foi no início do ano letivo de 1989, depois do Inter perder para o Bahia a final do Brasileirão. Eu estive na praia durante esse período; assisti pela TV o colorado eliminar o Grêmio no Gre-Nal do Século, e tive a chance de vibrar como um secador juvenil a derrota final do Inter diante de Bobô e Cia. O assunto ainda estava vivo quando as aulas voltaram, evidentemente; e logo nos primeiros dias o Alexandre me aparece, sem medo de ser feliz, vestindo de modo animado uma camiseta do colorado. Óbvio que nós, gremistas derrotados, mas ainda assim triunfantes, caímos em cima dele sem dó, debochando de todos os modos daquela vítima que vinha sorridente e uniformizada para o sacrifício da flauta. E o Alexandre, que nunca se alterava muito com as provocações, encarou tudo com serenidade, dizendo a certa altura (e eu me lembro disso como se fosse hoje): “não tem problema, perdemos sim, mas meu pai me disse que um dia a gente volta a ser campeão”.
Moleques inconsequentes que éramos, continuamos rindo dele naquele dia – mas hoje, uns vinte anos mais velho e um pouquinho mais sábio do que naqueles dias, vejo finalmente que o pai do Alexandre estava coberto de razão. Pois, o que vemos nós hoje? Um Internacional que está sempre na luta pelas conquistas, com uma Libertadores e Mundial que pertencem a um passado nem um pouco distante, que empilha ídolos e que atualmente vai com fortes condições rumo à conquista de um Brasileirão depois de trinta anos na fila. O Grêmio, por sua vez, bate na trave a todo o momento, amargou recentemente uma segunda passagem pela famigerada Segundona, lembra das glórias internacionais como algo que aconteceu na Idade da Pedra Lascada e conta nos dedos da mão os ídolos de sua história recente. Enquanto o Taffarel foi campeão do mundo, virou empresário de jogadores e enche o bolso de dinheiro, o Lima fracassou no Benfica, teve um affair com a senhora do mercadinho do lado da minha casa (é sério!) e hoje mora no Laranjal... E hoje, nos colégios e escolas de primeiro grau do Rio Grande e além, ser colorado deve ser uma beleza, enquanto vestir a camiseta tricolor não chega a ser ousadia, mas garante algum incômodo para qualquer moleque gremista por aí. É engraçado isso, perceber como as coisas são mesmo cíclicas em tudo na vida...
Imagino ser bem possível que hoje o Alexandre que conheci moleque seja um adulto com a vida estabilizada, talvez casado, talvez com filhos na escola, coloradinhos que usam com orgulho o uniforme vermelho e branco do time que herdaram do pai. Se ele ainda lembra das palavras do pai, deve ser grato por elas, e duvido que se arrependa dos dias em que era um ousado piá que vestia a camisa colorada sem medo do resto do mundo. Da minha parte, a vida está bem confusa, não tenho qualquer estabilidade e, até onde sei, não tenho nenhum filho por aí; mas se eu tivesse um, e ele fosse à escola, eu o incentivaria a ir usando o uniforme tricolor, sem medo – e caso o Inter vença esse Brasileirão, eu roubaria para mim as palavras do pai do Alexandre e diria para ele: calma, moleque, um dia a gente volta a levantar taças por aí. Porque tudo é cíclico, tudo que vai acaba voltando, e essa é uma das grandes belezas de tudo – do futebol, e da vida.
* Igor Natusch, autor deste texto, estreia sua coluna semanal Quero e Vale Quatro, onde escreverá crônicas e reportagens todas as terças-feiras aqui no Carta na Manga.
Comentários
Bem-vindo, meu caro Natusch. E aguardo aquela matéria sobre o Steaua-1986 que tu andavas me prometendo.
Eu já tinha conhecimento total de sofrimento futebolístico no início dos anos Nirvana. Não fossem Célio Silva, Fabiano Cachaça e Flávio Obino, a década de 90 poderia ter me transformado num fã de tênis, por exemplo. Credo !
Escapei por pouco.
pode ter parado na minha casa, pois eu ganhei uma camiseta do Mazaropi em 1993.
excelente texto, Natusch. Muito bom.
na minha turma, dos aprox. 37, tinha uns 5 ou 6 colorados assumidos. lembro de um chamado STEFAN, que trovava ser gremista. tentamos achar o cara de todo jeito no dia de fluminense x inter pela copa do brasil e a mãe dele entregou, ao telefone: estava no jogo, com o pai, assistindo aquele que, por muito tempo (15 anos?) foi a última conquista do inter, fora gauchões. heh.
descontando essa copa do brasil roubada, seriam 27 anos sem títulos de vulto, certo? até ser campeão da libertadores e mundial, numa série de eventos desafortunados. e eu só fui secar mesmo contra o barcelona.
Brincadeiras à parte, nossa ideia é aumentar a diversidade dos textos por aqui, sem perder o foco nas análises do futebol atual que sempre fizemos. Com essas duas grandes contratações recentes, a expectativa é de que honrem seus salários milionários e deem grandes respostas. :)
Acho que minhas maiores tristezas no colégio foram o Mundial de 1995, rebaixamento de 1991 e o Gre-Nal dos 5 a 2. Essa Copa do Brasil foi em dezembro, já tinham acabado as aulas.
Mas entendi a flauta, hehe.
Nunca me achei um mártir. Não tenho traumas do Colégio. É verdade que foi uma época de muitas conquistas gremistas e poucas conquistas coloradas, mas enquanto vocês gritavam "campeão do mundo!" e "campeão da américa" nós gritavamos "tri-campeão brasileiro" e "ão-ão-ão segunda divisão". Eu sabia, como o moleque da história, que um dia o Colorado voltaria aos seus dias de glória e a História provou que eu estava certo.
Parabéns aos tricolores!!
até por que, eu comecei a IR AO CAMPO em plena segunda divisão. pior que segunda divisão, não fica.
Meu primeiro jogo no Olímpico foi pela COPA GOVERNADOR de 1991. Grande atuação de Alcindo e Mabília, Grêmio 3 x 0 Juventude.