Onze metros depois, a história

Nenhum momento é tão dramático e crucial para um goleiro quanto a cobrança de uma penalidade máxima. Ok, na verdade esse tipo de lance é dramático para todos os envolvidos, e qualquer goleiro pode ter inúmeras oportunidades de se consagrar com a bola rolando, sem depender de uma defesa de pênalti para tal. Mas essa situação é, dentre todas, aquela na qual o goleiro está mais vulnerável e, ao mesmo tempo, mais em evidência. Tudo está contra ele: a distância do chute é curta, não há ninguém para interferir na trajetória da bola ou para cobrir a visão do batedor. Se ele adiantar-se para a defesa, o lance será repetido – e, suprema dificuldade!, agora o adversário pode fazer quantas fintas e paradinhas quiser antes de chutar, deixando o arqueiro em uma situação de inferioridade que beira a covardia. Penâltis decidem campeonatos, pênaltis podem colocar abaixo o trabalho de um ano inteiro ou ainda mais – e o goleiro está lá, sozinho, parado na risca central, com todas as chances jogando contra ele. E dependendo do caso, ele não pode falhar. Ele simplesmente não pode falhar.

Imagino que fosse algo semelhante que Geraldo Pereira de Matos Filho estivesse sentindo naquela tarde de quarta-feira, 06 de julho de 1983. Mesmo para ele, goleiro já experiente, com mais de uma década de serviços prestados ao Vasco da Gama e uma vitoriosa temporada com o Coritiba no currículo, tratava-se de um daqueles momentos definidores de toda uma carreira. Chegado ao Grêmio especialmente para a disputa das fases finais da Copa Libertadores daquele ano , Geraldo – ou Mazaropi para todos nós, apreciadores do futebol – tinha naquela partida contra o América de Cali, naquela tarde ensolarada de Porto Alegre, a chance de justificar sua contratação por empréstimo e, de quebra, cravar seu nome na história do clube. E tudo se daria do modo mais dramático, da maneira mais marcante e imprevisível: em uma cobrança de pênalti, bola na marca da cal, goleiro em cima da linha do gol, ambos separados por onze metros de eletricidade e expectativa.

Não era um acidente qualquer de uma partida de futebol, acreditem. Até o instante fatídico, o Grêmio vencia o jogo por 2 a 1, e mantinha vivas as chances de classificação para a grande decisão da Libertadores. Na partida anterior, na Colômbia, o mesmo América havia imposto ao clube gaúcho sua única derrota na competição, um 1 a 0 que complicava a situação do Grêmio no triangular decisivo que disputava. A vitória em Porto Alegre era fundamental – pois na sequência o time iria até a Argentina, enfrentar o poderoso Estudiantes, e se para lá rumasse sem os pontos dessa vitória a decisão de título seria pouco menos que impossível. A vitória, portanto, era muito importante. E ela estava vindo até os 23 minutos da segunda etapa, quando uma bola foi cruzada da esquerda de ataque do América e, sorrateira e cruel, bateu de modo visível no braço do zagueiro gremista Baidek. Pênalti a favor do time de Cali – e, se o gol fosse convertido, o jogo empataria, e para o time gaúcho a conquista do continente estaria praticamente perdida.

Mazaropi tinha em suas costas, portanto, a responsabilidade de toda uma campanha, o peso de todo um período de planejamento, e a tensa esperança dos pouco mais de 24 mil torcedores presentes no Olímpico. Diante de si, o centroavante Ortiz, pronto para o chute. E adiante, mirando no futuro, o chamado da história, ou a névoa cinzenta do esquecimento. Não sei se foi algum tipo de lógica que o moveu quando o juiz Hernan Silva autorizou a cobrança, ou se o arqueiro simplesmente deixou-se levar pelo impulso, confiando mais no instinto do que na racionalidade, às vezes tão traiçoeira, como sabemos. Seja como for, Mazaropi escolheu o canto correto, pulando para a direita; e, como o chute foi forte e mais alto do que talvez esperasse a princípio, ergueu o goleiro o braço esquerdo, em pleno salto, num reflexo, tapeando a bola para a linha lateral. Mais do que uma simples intervenção, uma defesaça. E mais do que simplesmente pegar um pênalti, Mazaropi garantiu o resultado, manteve o Grêmio vivo, e permitiu que a jornada rumo ao primeiro título continental tivesse prosseguimento. O delírio que tomou conta do estádio é a euforia do próprio guarda-redes após a defesa: braços erguidos, andar confiante, a partir daquele momento Geraldo Pereira de Matos Filho podia ter certeza que nunca mais seria lembrado apenas pelo simples e nada chamativo nome de batismo. A partir daquele instante, mais do que nunca, Geraldo era Mazaropi. E assim seria para todo o sempre.

Claro que, depois, Mazaropi faria inúmeras coisas dignas de nota. Entre outras, seria peça decisiva na conquista da Libertadores e do Mundial Interclubes pelo Grêmio, além de levantar taças de vários Campeonatos Gaúchos e da primeiríssima Copa do Brasil. Seria também vereador em Porto Alegre, treinador de goleiros no Japão, e atualmente usa toda sua sabedoria como treinador em clubes do interior do Rio Grande do Sul e do Brasil. Mas nada disso teria sido viável se não tivesse ocorrido o gesto inicial, a defesa marcante, o lance que definiu a trajetória de uma carreira já vitoriosa, mas a partir dali marcada de vez na eternidade do futebol.

Como dissemos no início, um pênalti pode ser um evento definitivo na vida de um goleiro. Muitas vezes, um goleiro tem em um pênalti a responsabilidade de todo um clube, toda uma torcida, toda uma história que foi e uma história que pode vir a ser. Muitas vezes, ele não pode falhar. Aos que não falham, resta a bênção da eternidade. E, mesmo que nem sempre plena de reconhecimento público ou abundante de bens materiais, ela costuma ser generosa, a seu modo, com todos aqueles que lutam por ela.

Perguntem a Mazaropi. Ele, certamente, pode dizer melhor do que quase todos nós.

Foto: a antológica defesa de Mazaropi em Grêmio x América de Cali, pela Libertadores de 1983 (Libertadores 1983).

Comentários

Vicente Fonseca disse…
Essa defesa do Mazaropi é, até hoje, a maior que vi em pênaltis. O reflexo dele é extraordinário, fora o fato de ser um momento decisivo na história do Grêmio. O Ortiz não bateu mal, pelo contrário.

Fantástico, Igor.
Saulo disse…
Quando um goleiro pega um pênalti as vezes falam que o jogador que bateu mal e não vê os méritos do goleiro.
Prestes disse…
DO CARALHO!

Não sabia desse pênalti.

Mas eu preferia os sucessores dele, Gomes e Sidmar, hhuuhuhuah

Será que tem vídeo desta defesa??
Vicente Fonseca disse…
http://libertadores1983.blogspot.com/2007/01/semifinais-gremio-2-x-1-amrica.html

Aqui tem o vídeo. Os dois gols do Grêmio (1 x 0 Caio, 2 x 1 Osvaldo) e a defesa do Mazaropi.
Prestes disse…
Aham, eu vi.

Muito palha esse vídeo, queria assistir vermelhos fazendo gol no Grêmio, uhasuhsuhsdushhusauhasdhusauhsah
Vicente Fonseca disse…
Opa. Que tal um do último Gre-Nal então?

:)

Detalhe que este jogo com o América foi DOIS DIAS antes da Batalha de La Plata. Fueda.
André Kruse disse…
Muito bom, linkei no meu blog:http://gremio1983.blogspot.com/2009/09/lara-o-craque-imortal.html

Na Libertadores de 83 o calendario era organizado para a realização de jogos na terça e na sexta.

Gremio jogaria na terça contra o América no Olímpico. Mas chuveu torrencialmente e o jogo foi adiado para a tarde do dia seguinte.
Lourenço disse…
Vamos combinar que o pênalti é a melhor coisa para o goleiro. Não tem nenhuma responsabilidade e, mesmo quando pega sem querer, se consagra.
Para o batedor, não diria que é a pior coisa do mundo, mas com certeza é um momento muito mais difícil. 10 entre 10 pessoas vão escolher o pênalti errado do Baggio como o lance que lembrar da sua carreira. Poucos lembram que o Romário acertou o pênalti.