Enterrem meu coração debaixo da arquibancada do Estrelão
Imagino que a estrondosa maioria dos porto-alegrenses ignorasse completamente que a cidade abrigaria, em plena tarde de quinta-feira, um clássico do futebol gaúcho. Foram poucos, portanto, os que se deslocaram até o Estrelão para assistir Cruzeiro-POA 1 x 2 São José, válido pela quarta rodada do returno do grupo metropolitano da Copa Laci Ughini. Imagino que a moça parada à entrada do estádio, fazendo as vezes de bilheteria móvel, tenha vendido poucos ingressos. O que foi uma pena, sem dúvida - porque o clássico Zé-Cruz não só foi uma partida interessante, como uma chance de ouro para um grande reencontro com o que, de fato, constitui o futebol.
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Tudo que temos em uma partida de Brasileirão ou Copa do Brasil está também presente em jogos como Cruzeiro x São José, ainda que em escala consideravelmente menor. A começar, obviamente, pela torcida - que no caso do Estrelão ficou em torno de 70 pagantes, segundo cálculo visual feito pela minha humilde pessoa. Para garantir a segurança de todos, efetivos policiais foram deslocados - mais especificamente, uma dupla da Brigada Militar, que chegou a sentar-se para assistir o jogo entre uma ronda e outra. Ambulantes? Tínhamos um, vendendo água, refrigerantes e até a famigerada cerveja, bem como pastéis e empadas de queijo. Até a torcida especialmente barulhenta atrás de uma das goleiras tivemos a oportunidade de ver. Verdade que os 13 integrantes da Barra Cruzeirista não podem ser comparados numericamente aos milhares de participantes da Geral ou da Camisa 12, mas foram suficientes para encher de cantoria a tarde no Estrelão.
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Pena para os torcedores do estrelado que o São José saiu na frente logo aos 2mins de jogo, com Kanu, o que deixou a situação consideravelmente tensa para o time da casa. O Cruzeiro sentiu o baque inicial, quase tomou o segundo logo em seguida, e teve grandes dificuldades para recuperar as rédeas da partida. Mesmo que a posse de bola fosse cruzeirista, as chances eram quase todas do Zequinha, com direito a falta cobrada na trave e vários chutes perigosos. Um pênalti deixou de ser marcado para o São José, em jogada de contra-ataque do Zequinha - e o juiz fez o que já se tornou praxe no futebol brasileiro: aplicou cartão amarelo ao atacante, punindo uma simulação que absolutamente não aconteceu.
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As dificuldades da partida foram desanimando a torcida local. Derrotada pelo calor, a Barra Cruzeirista silenciou os tambores e escondeu-se debaixo de uma das faixas, buscando proteção contra o solaço inclemente. Para não dizer que não havia torcida do São José, dois ou três solitários apoiadores estavam nas tribunas. Um deles gritou gol logo após o tento que abriu o placar, e foi alvo da repreensão veemente, mas bem-humorada da maioria estrelada. "Se o senhor gritar de novo, vamos te tirar daqui à força", ameaçou um torcedor, fingindo seriedade. Logo depois, abriu um sorriso, deixando claro que não falava a sério.
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Uma das coisas mais sensacionais sobre uma partida como essa é a possibilidade de escutar de forma distinta os sons do futebol. Geralmente, o rugir das arquibancadas é um trovão a encobrir todo o resto, trilha sonora impositiva de todo jogo que não é acompanhado com auxílio de rádio ou TV. Nos humildes gramados da Copa Laci Ughini, surgem novos sons. A bola na trave provoca um estalo metálico, o chutão traz o baque surdo, jogadores discutem e orientam uns aos outros no gramado. Em determinado momento do primeiro tempo, os cruzeiristas Abuda e Faísca estabeleceram um diálogo perfeitamente audível, depois que o segundo, sob marcação, não conseguiu tocar a bola para o primeiro. "Já passei, já passei", dizia Abuda, desolado, apontando que estava livre. "Tentei passar, Abuda. O cara tava em cima", responde Faísca, chateado com a cobrança. Instantes depois, já em outro lance, se cumprimentam, mão de um no ombro de outro, dando fim ao desentendimento.
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Obviamente, a relação de torcida e jogadores acaba ganhando uma outra dimensão também. "Não vai ficar nervoso, goleiro", adverte um dos integrantes da Barra Cruzeirista, após o arqueiro Maxsuel equivocar-se em um escanteio. "Tem que jogar pelo outro lado", critica outro, vendo a insistência do estrelado em jogar sempre pelo lado direito, com Marcio, deixando Faísca quase sem participação ofensiva. "Não tem que jogar bola para fora não, Foguinho, ele tá fazendo cera", vocifera um terceiro torcedor, ao ver o fair play de seu atleta em um momento difícil do Cruzeiro no jogo. Todos gritos, como sabemos, comuns no futebol milionário de Arenas, Olímpicos e Beira-Rios - mas que, no pequeno e humilde Estrelão, ganham uma nova dimensão e importância.
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A partida acabou sendo carrasca com o Cruzeiro. Muito mais eficiente do ponto de vista ofensivo, o São José marcou o segundo gol na metade da etapa complementar, em um belo chute de Cassiano. O 2 a 0 praticamente liquidava o time da casa na partida. O clima, nesse momento, era de desolação. "Empata com o Grêmio no Olímpico e vem perder em casa para o time do Noveletto", lamentou um torcedor, espanando os farelos de pastel da camisa cruzeirista que envergava. Outros destinaram sua revolta à arbitragem. "Tá ganhando quantos CDs, seu sacana?", alguns gritavam, insinuando um suborno com álbuns de pagode financiado pela rede Multisom. Ernani Campelo, um dos mais famosos torcedores do estrelado, andava nervosamente para lá e para cá, dividindo-se entre impropérios e gritos de incentivo. Estava em casa, com febre, mas deixou para trás o repouso e foi até o Estrelão para torcer.
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O atacante Mauro saiu do banco de reservas para marcar o gol do Cruzeiro, aos 36mins da etapa final. O empate passou a ser uma perspectiva mais concreta, e os últimos minutos foram de pressão do time da casa. No entanto, faltava uma presença mais aguda, uma mecânica de jogo que desse ao Cruzeiro uma dominação que fosse além do entusiasmo. Algo compreensível até, na medida em que o Cruzeiro jogou virtualmente sem técnico. O recém chegado Beto Campos bem que tentou, mas não teve tempo sequer para um recreativo antes do jogo - ou seja, restou ao substituto de Suca distribuir as jaquetas e torcer pelo melhor. Que acabou não vindo: depois de duas expulsões (Geison no São José e Claudio no Cruzeiro), a partida foi encerrada abruptamente pelo árbitro, que ignorou o minuto extra de descontos apontado por ele próprio segundos antes do apito final. A discussão no fim do jogo, com jogadores do Cruzeiro cercando a arbitragem para reclamar do período de descontos, foi a única chance do casal de brigadianos ter algum tipo de participação no espetáculo, acompanhando o trio de arbitragem à saída do campo.
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Na saída do estádio, uma derradeira visão. Na ausência de vestiários, os jogadores do São José foram tirando o uniforme ao lado do ônibus que os levou para o jogo, logo antes de embarcar. Sentados na grama, removeram chuteiras e caneleiras, contando a namoradas e familiares sobre a vitória em conversas via celular. Embarcaram em seguida, para tomar o banho pós-jogo nos chuveiros do Passo D'Areia. Aos atletas cruzeirenses, o ônibus também serviu de vestiário, mas o banho ficou para mais tarde, já em casa. Não há glamour ou regalias na Copa Laci Ughini , como se vê. Futebol, porém, aquele futebol que nos emociona e nos faz vibrar, isso não falta. Garanto. Porto Alegre não sabe o que perdeu. Quem vai comigo da próxima vez?
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Abaixo, os gols da partida, tirados do site do E.C. São José:
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Comentários
No mais, grande relato.