O clássico no cerne da família gaúcha

Sérgio Moacir, goleiro do Grêmio na inauguração do Olímpico

Frederick Posselt Martins*
Não sei vocês, mas às vezes tenho a impressão de que o Clássico Gre-Nal era mais tradicional e disputado entre os anos 40 a 70 do que após esse período. Muito, talvez, devido à Dupla concentrar seus esforços na conquista do Campeonato Gaúcho. A Taça Brasil não tinha aquela importância toda que um Brasileirão atual possui, e a Libertadores, que surgiria nos anos 60, ainda não era um sonho de conquista para Grêmio e Inter - sonho que passaria a ser alimentado nos anos 70.

Longe de querer desmerecer os jogos atuais entre tricolores e colorados. Tivemos bons clássicos recentemente, como esse último de domingo. Tivemos uma goleada recente no tradicional prélio, além de ídolos que se consagraram por causa de um único jogo. E quem nunca ouviu aquelas histórias dos parentes mais antigos (especialmente pais e avôs) sobre os clássicos dessa época, que eles ouviam no rádio ou assistiam nos estádios, rechados de flautas, pancadarias e gols de ídolos que se consagravam justamente nessas partidas? Era indignação àqueles que, do nada, marchavam pra vestirem a cor do rival citadino, e idolatria por aqueles que juravam amor à camisa do clube, ou que haviam se destacado de forma a entrarem pras páginas da história da instituição de forma indelével. Ídolos cujos nomes eram homenageados quando o torcedor colocava seu nome no seu rebento, como aconteceu com meu avô materno, na história que contaremos agora.

O tal ídolo que nos referimos - e que conhecia muito bem o Gre-Nal como tantos outros jogadores dessa época - era conhecido como a Majestade do Arco. Jogou como goleiro tanto no Grêmio quanto no Inter, e embora não tivesse a estatura que se exige, atualmente, pros jogadores de sua posição, retribuía tal estorvo com muita agilidade nas defesas e rapidez na saída do gol. Afinal, como diz o velho ditado, tamanho não é documento, e ele ignorou esse dado pra se destacar entre as traves, defendendo a couve do fundo do gol (abraço, Silvio Luiz) com maestria.

Mas não se resume aí o mérito de Sérgio Moacir Torres Nunes em ter se consagrado como um grande nome do futebol gaúcho dos anos 50 a 70, especialmente na história do clássico. Nascido em Taquara, no - cada vez mais - longínquo 14 de junho de 1926, iniciou sua carreira no Floriano (hoje Novo Hamburgo), em 1946. Seu primeiro ano como jogador de futebol atraiu a atenção do tricolor gaúcho, que o contratou no ano seguinte. Logo em 1949, ele ganhava seu primeiro Campeonato Gaúcho com o manto azul, preto e branco, e consequentemente, seu primeiro título - ironicamente, em cima de sua ex-equipe, o mesmo Floriano.

Veio, então, uma época negra, com o Internacional conquistando um tetracampeonato nos anos seguintes. Ainda assim, algo faria Sérgio entrar logo cedo pra história do Grêmio: foi ele o goleiro tricolor na inauguração do Estádio Olímpico, na época o maior estádio particular do país. Nos dois primeiros jogos, vitória sem a meta vazada: 2x0 no Nacional de Montevidéu, e 4x0 no Liverpool platino.

Mas aí, veio o Inter, e junto com ele, um clássico para se esquecer: 6x2 para os visitantes. Reza a lenda que Sérgio, devido ao seu temperamento, ficou irritado com a displicência da defesa do Grêmio no quarto gol tomado, e decidiu abandonar o campo. Um jogador colorado o provocou: "Volta pra tomar mais quatro, covarde!" Como de praxe em todo clássico, um tumulto tomou conta do novo gramado. O arqueiro voltou para defender as metas e tomar SÓ mais dois gols.

Há quem diga que esse clássico marcou o goleiro, embora eu discorde. Muito porque, em 1956, depois de ter ganho o Gauchão pelo tricolor, ele debandou logo depois pro Inter, onde aposentou as luvas e passou a viver de futebol na casamata. Logo cedo, ganhou outro Gauchão em 1961, com o próprio Inter. O rival não demorou para trazer o sujeito de volta, e em 1962, ele assumia como técnico do Grêmio. Com toda essa história, já se poderia dizer que Sérgio é um autêntico homem Gre-Nal. Mas é o Gre-Nal decisivo do Gauchão de 1962 o cerne da história toda.

Reza a lenda que faltavam dois jogos pro campeonato terminar. O Inter liderava com quatro pontos de vantagem sobre o Grêmio, e naquela época, vitória valia dois pontos. Título praticamente certo pros vermelhos, que jogariam nos Eucaliptos contra o Aimoré, enquanto os azuis iriam pra Pelotas tentar uma última esperança na Boca do Lobo. Houve flauta dos colorados, que simularam um enterro tricolor na ponte do Guaíba, bem em frente ao ônibus da delegação gremista. Sérgio Moacir, então, chamou os jogadores e fez a promessa: "Deem-me a vitória em Pelotas e dou o campeonato pra vocês". E a estrela do homem brilhou: enquanto o Grêmio batia o auricerúleo por 4x0, o Inter perdia nos Eucaliptos por 3x1 para os leopoldenses. A última rodada preparava um... Gre-Nal.

O Grêmio precisava vencer aquele jogo para forçar um clássico extra, que decidiria o título. Venceu por 2x0, em pleno Eucaliptos, e forçou o jogo extra e decisivo. Venceu este jogo também por 4x2, iniciando o heptacampeonato dos anos 60 e consagrando Sérgio Moacir como um célebre Homem Gre-Nal destes pagos.

O título foi o suficiente para que um torcedor de Venâncio Aires – aquela pacata cidade cuja perspicácia fez com que fosse colocada uma cuia numa de suas praças, com torneiras de água quente, para reabastecer a térmica de mate, arguta ideia que a medíocre capital ainda não teve a audácia de adotar – homenageasse o filho, que viria três anos depois, com o nome do técnico gremista. E quando o tio nasceu, não houve dúvidas por parte de Vô Nilson em chamá-lo de Sérgio Moacir. Tudo devido a um clássico. Tudo devido a um técnico. Tudo devido a um título.

Vô Nilson não teve tempo de se chatear com a ida do seu homenageado novamente para o rival, quiçá de ver seu clube perder o título de 69 debaixo de pancadaria e amargar oito anos de espera pela reconquista da hegemonia estadual. Falecera no ano do hepta. Deixara de herança o nome de um ídolo do ludopédio pampeano na família. E talvez bastasse, ao menos para o tio, que teve a chance de ver o tricolor ganhar o mundo com apenas 18 anos de idade, bem como se chatear com as derrotas que viriam em tantos outros clássicos.

A Majestade do Arco ainda teria muita história para contar sobre sua carreira de futebol. Acima do Mampituba, treinaria o Avaí na província vizinha, e o Vitória um pouco acima. Faleceria em 2007, em Viamão, devido a problemas cardíacos, deixando uma história de sucesso na Dupla, tanto em sua época de jogador como de técnico. Como tantos outros jogadores consagrados como Homens Gre-Nais, teve seu mérito justamente conhecido pelos torcedores. Um em especial, ao menos.

Pode ser que os velhos tempos de clássico estejam voltando, agora que os clubes brasileiros estão conseguindo se adaptar com a Lei Pelé. Novos ídolos surgem e permanecem em seus clubes, e não deve demorar muito para que apareçam nestes pagos torcedores como Victor’es, Jonas’es, Bolívar’es e Andrés Nicolas (D’Alessandro’s é forçado, convenhamos). Mas aquela época foi única por ter o Gauchão como foco central da rivalidade da dupla, como título máximo do futebol gaúcho, e pela propensão ter sido tão aproveitada por todos, a ponto de surgirem tantas histórias sobre os clássicos. Resta-nos celebrar e torcer, levando outras histórias adiante toda vez que vermos os dois maiores clubes destes pagos se alinhando em campo para o tradicional prélio. E, claro, homenagearmos nossos filhos. Afinal, quem disse que o Gre-Nal não é um clássico de família?

Rapidinhas
  • Depois do 2x2 no Ca-Ju da Série C, onde houve desentendimentos entre os jogadores e também entre dirigentes, as direções de Caxias e Juventude decidiram cortar relações por tempo indeterminado;
  • Segue o impasse de uma possível parceria entre os Interes (de Porto Alegre e de Santa Maria). Do jeito que estão as reuniões em Santa Maria, ainda está longe uma possível resposta sobre a questão;
  • Grenás e Xavantes se uniram para solicitar um prolongamento da Série C. A ideia é que a Terceirona tenha dois clubes com 10 times. Na minha opinião, isso já deveria ter acontecido quando se criou a Série D. Noveletto prometeu conversar com a CBF sobre a questão. Fiquemos de olho.
Foto: Arquivo ZH.

* Colaborador especial, escreve todas as quartas sobre futebol gaúcho aqui no Carta.

Comentários

Sancho disse…
Sobre A Série C, tentou-se este ano sem sucesso. Nalguma hora, se consegue...
Igor Natusch disse…
Debulhei-me em lágrimas com esse post. Maravilhoso, meu Jovem.

P.S.: Perguntei para o Verificador de Palavras: "VdeP, o Grêmio vai vencer o Fluminense amanhã?" Ele me respondeu: BARBADA. Tá bom, então =D
Sancho disse…
Por essas e outras que os Estaduais devem ser VALORIZADOS; não, o contrário.

P.S.: Aguante, VdP!
Vicente Fonseca disse…
História realmente sensacional. Essa do "enterro" do Grêmio na ponte do Guaíba eu não sabia. Genial, ainda mais porque não deu certo :)

Também acho que os estaduais devem ser valorizados. Mas não supervalorizados, com duração quase até junho, como teremos em 2011.

E dale VdP!!!
Obrigado pelos comentários, amigos.

1) A Terceirona tinha planos pra, quando a Série D foi criada, de se usar a fórmula dos dois grupos de 10. Passaram duas edições e nada. Espero que, uma hora, usem essa fórmula. Os clubes que a disputam só tendem a ganhar.

2) Concordo que os estaduais precisam ser valorizados, é através deles que os clubes menores se fortalecem e aparecem no cenário nacional. Isso que nem falamos da situação das federações do norte do país, que nem conseguem organizar seus próprios estaduais. Se acabar com esse campeonato, sobra o que pros times do Acre, Roraima ou Amazonas?

3) A história do enterro eu li num site que fala sobre os mais célebres clássicos Gre-Nais. eis o link --> http://classicoeclassico.sites.uol.com.br/rs/grexinter_historias.htm