Saída de bola para o SOE - gol do AS Adema
Sejamos sinceros: existe uma espécie de satisfação sádica em todas as goleadas. Quer dizer, quando o nosso time é a vítima, muito provavelmente não há satisfação nenhuma – mas é sempre um deleite empilhar gols no adversário, subjugá-lo até as lágrimas enquanto a torcida ensaia gritos de olé. Mesmo quando não temos nada a ver com a partida, quando apenas testemunhamos de modo neutro a humilhação do homem pelo homem, sentimos certo prazer difuso, misturando uma dose de piedade com a vontade de ver os infelizes chafurdando mais e mais na lama. É assim que as coisas são: o futebol, válvula de escape e representação simbólica de tantas coisas, não poderia deixar de trazer em si também a crueldade intrínseca em nossa psique.
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De qualquer forma, duvido que os torcedores do AS Adema Analamanga tenham saído felizes do estádio, naquele 31 de outubro de 2002. Na verdade, a se crer nos relatos, estavam revoltadíssimos, aglomerados diante das bilheterias do Barikadimy Stadium de Toamasina, Madagascar, exigindo seu dinheiro de volta. Uma reação estranha – afinal, não apenas tinham confirmado o título da THB Champions League, maior competição do futebol do país africano, como tinham acabado de aplicar uma sonora goleada sobre o Stade Olympique de L'Emyrne, adversário sempre complicado e que havia sido campeão malgaxe no ano anterior. Mas uma revolta que acaba ganhando inusitado sentido, quando revelamos que a partida válida pela última rodada do quadrangular final terminou com o placar de 149 x 0 para o AS Adema. Não, eu não errei a digitação: foram de fato cento e quarenta e nove gols a zero. Isso mesmo, o AS Adema venceu por 149 gols de diferença, registrando assim a maior goleada da história do futebol mundial. E em uma partida na qual nem chegou a tocar na bola...
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Calma, calma, já vou explicar. Como o mais singelo senso comum não deixará de confirmar, não é concebível uma equipe de futebol fazer tantos gols em cima da outra na pura base da superioridade técnica. Seria necessário marcar um gol a cada 36 segundos, tarefa que nem o Barcelona contra o dente-de-leite do íbis daria conta de cumprir. Para que tamanho absurdo seja possível, só invertendo a lógica – ou seja, contando com a colaboração ativa do adversário para goleá-lo além da imaginação. E foi justamente isso o que ocorreu: o Stade Olympique de L'Emyrne (ou SOE Antananarivo, para os mais íntimos) não só deixou o AS Adema deitar e rolar como fez sozinho todo o serviço para o adversário. Não só foram 149 gols, como todos eles foram marcados pelos próprios jogadores do SOE – gols contra, enfim. E é a partir desta bizarra constatação que o excêntrico placar começa a fazer (algum) sentido.
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O SOE Antananarivo havia conquistado em 2001 o seu primeiro (e até aqui único) título na THC Champions League – um torneio de história respeitável que existe desde 1962, apesar de algumas interrupções pelo caminho. Um torneio de longa duração é difícil no país, já que as estradas são precárias e os deslocamentos dos clubes ficam muito prejudicados. A solução é dividir o campeonato em pequenas ligas locais, juntar os vencedores de cada uma e promover grandes festas nacionais de futebol, com até quatro jogos ocorrendo no mesmo dia. No campeonato de 2002, o time vinha embalado para o bicampeonato, com uma equipe forte para os padrões locais – contava até com Mamisoa Razafindrakoto, zagueiro e na época capitão da seleção de futebol do Madagascar. No quadrangular final, enfrentavam AS Adema, US Ambohidratrimo e Domoina Soavina Atsimondrano (DSA). Seguindo a lógica dos jogos festivos, o quadrangular foi disputado em 11 dias e sediado na cidade neutra de Toamasina.
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Na penúltima rodada, o SOE precisava de uma vitória sobre o DSA para chegar vivo na partida final, mas acabou ficando no empate em 2x2, placar que acabou dando o título por antecipação para o AS Adema. O jogo foi muito polêmico, com o juiz Benjamina Razafintsalama marcando no apagar das luzes um pênalti contra o SOE. Aparentemente, o time já tinha sido prejudicado pela arbitragem em outros jogos do quadrangular, o que só viria a somar na tensão daquele momento. Revoltado com a injustiça, o técnico do SOE Ratismandresy Ratsarazaka saiu de campo bufando, prometendo “surpresas” para a partida de encerramento da competição, agora transformada em uma mera entrega de faixas para o AS Adema.
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E surpresa não faltou naquele 31 de outubro de 2002, vamos combinar. Como dito anteriormente, o dono da casa sequer tocou na bola: o SOE Antananarivo saiu com a posse de bola, e imediatamente tratou de abrir o placar com um belo gol contra a própria meta. Com pressa de buscar o resultado, os jogadores pegaram a bola rapidamente, correram para o meio de campo, retomaram a partida e imediatamente fizeram outro gol contra. Incentivados pelo treinador e pelos jogadores mais experientes do plantel, os atletas do SOE não esmoreceram, entregues de corpo e alma à tarefa maníaca de marcar bucha após bucha contra o próprio gol. E assim foram, incansáveis, durante todos os 90mins de jogo. Por algum motivo, o árbitro achou que não tinha motivos para intervir, e resumiu-se a ficar atento para não perder a conta dos gols. Atônitos, os atletas do AS Adema ficaram apenas observando tudo, chegando a sentar no gramado enquanto seus adversários construíam a inacreditável goleada. Um protesto inusitado, mas que sem dúvida chamou a atenção...
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Uma partida tão, digamos, inusitada não poderia passar em branco. A Federação Malgaxe de Futebol reuniu-se para deliberar sobre o fato, e cerca de um mês depois do jogo distribuiu uma série de punições. Ratismandresy Ratsarazaka, treinador do SOE Antananarivo e mentor intelectual do protesto, foi suspenso por três anos. Jogadores como o ídolo nacional Mamisoa Razafindrakoto, o capitão do SOE Manitranirina Andrianiaina e os atletas Nicolas Rakotoarimanana e Dominique Rakotonandrasana foram suspensos até o final da temporada. Os demais participantes da bagunça receberam repreensão pública e foram ameaçados de punições mais sérias caso insistissem com essa mania de fazer gols contra si mesmos. Curiosamente, porém, a partida não foi suspensa – e o insólito 149 a 0 segue impávido como o maior placar já registrado em jogos oficiais de futebol.
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Embora esquisita, a decisão de manter o placar como válido acaba tendo algum valor prático. O recorde oficial de gols até então era da partida Arbroath 36 x 0 Bon Accord, válida pelo campeonato escocês de 1885. Um jogo também curioso, diga-se, já que reza a lenda que o goleado Bon Accord era um time de críquete que se inscreveu no campeonato de futebol por engano... Seja como for, era um recorde de quase 120 anos – e certamente os cartolas malgaxes pensaram que não valia a pena perdê-lo só porque a partida que o gerou tinha sido uma palhaçada. Para um país quase invisível internacionalmente, que jamais conseguiu se classificar sequer para a Copa Africana das Nações e cuja maior glória futebolística é ter vencido a Copa Sub-20 da África Meridional em 2005, um feito desses não deixa de ter a sua magnitude. Nota-se até uma pitada de orgulho nacional, já que rádios locais descreveram a chuva de gols como uma “partida de primeira linha”.
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Continua constando, portanto, esse simpático embate entre AS Adema e Stade Olympique de L'Emyrne como a maior goleada que o futebol já viu – mesmo que não existam registros em vídeo do jogo e, portanto, pouca gente tenha visto de fato. E aqui entre nós, convenhamos que fica difícil imaginar algo assim acontecendo num futuro próximo...
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Foto: Mamisoa Razafindrakoto (esq), um dos homens que mais marcou gols contra em toda a história (site da Confederação de Futebol da África Meridional - Cosafa)
Comentários
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Malgaxe = melhor gentílico.
Pra mim, até este momento, SOE era o Serviço de Orientação Educacional. Era.
FALECI.
E vale lembrar que nosso chapa Mamisoa Razafindrakoto, além de ter sido capitão da seleção de Madagascar e curtir fazer uns gols contra o próprio time de vez em quando, virou herói de um dos grandes resultados recentes da seleção malgaxe: um empate de 0 a 0 contra Angola, nas eliminatórias para a Copa Africana de Nações que ocorreu no início do ano. Mamisoa tinha se aposentado, mas foi convencido a voltar e foi um dos heróis do empate sem gols, que teve gosto de goleada para os malgaxes...