O último dos Charruas?

A chama não morre. A esperança de rever o futebol aguerrido dos uruguaios voltando a ser vistoso e eficiente, como fora no cenário mundial na primeira metade do século XX, persegue almas e mentes dos amantes do esporte, e os tempos e craques idos entram em campo toda vez que a camisa celeste desponta dos vestiários para os gramados. Mas se a mística continua viva, os resultados vêm mostrando a Seleção Uruguai como um museu de glórias passadas. O último suspiro do futebol charrua ocorreu na Copa de 70 (a maior de todas?). Em 74, a equipe foi sovada pela Laranja Mecânica e, com mais uma derrota e um empate, eliminada na primeira fase. Doze anos sem Copa. Em 86, classificou-se na fase de grupos com dois empates, mesmo tomando uma sonora goleada da Dinamáquina (6 a 1). A eliminação veio em seguida, diante dos argentinos. Depois da vitória sobre a União Soviética, em 14 de junho de 1970, na Cidade do México, só venceria uma partida de Copa vinte anos depois, diante da fraquíssima Coreia do Sul. E esta é a única e muito solitária vitória dos uruguaios em Copas nos quarenta anos que seguiram a Copa de 70, porque a Celeste ficou de fora em 94, 98 e 2006, e em 2002 teve dois empates e uma derrota. A equipe charrua, que chegou às semifinais da Copa de 70, não encantou mas foi como os sobreviventes moicanos retratados no romance de James Fenimore. No século XVIII, os últimos sobreviventes desta tribo indígena foram imprensados pelas disputas entre ingleses e franceses no território que é atualmente dos Estados Unidos. Assim foi a Celeste de nomes como Mazurkiewcz, Ancheta e Cubilla, batalhando em meio a brasileiros, alemães e italianos, que dominariam o território copeiro dali em diante. Jogadores como estes três ainda não sabiam que teriam raros seguidores entre os uruguaios. Craque mesmo, como Pedro Rocha – que se machucou no início da primeira partida e só assistiu o resto do Mundial – surgiu apenas uma vez depois dessa geração e atende pelo nome de Francescoli. Bons jogadores aparecem aqui e ali, como Rubem Paz, Forlán e Lugano, mas seu sucesso cada vez é mais restrito. Apesar da perda de Rocha, aos 12 minutos do primeiro tempo, o Uruguai se impôs na estreia contra Israel, deixando a frágil equipe do Oriente Médio acuada em seu campo, e a envolvendo com bom toque de bola. A base da Celeste era formada pela equipe do Nacional que seria campeã da América e do mundo em 71. Na defesa havia Ubiña; na meia-cancha, Juan Mujica, Montero Castillo, Espárrago e Ildo Maneiro. No ataque, Luis Cubilla. Havia ainda Ancheta, que era do Nacional em 70, mas em 71 já era do Grêmio. Dos grandes jogadores do time campeão intercontinental só dois não estavam na Celeste, por motivos óbvios: o argentino Artime e o brasileiro (pero no mucho) Manga. A base de jogadores do Nacional era completa por atletas do rival, mas não menos importantes, como o goleiro Mazurkiewicz. Com essa base forte e entrosada, os uruguaios conseguiram um empate em zero a zero com os italianos, numa partida em que provavelmente ninguém queria vencer. Diante da Suécia, podendo perder por um a zero, a Celeste assim o fez. O adversário das quartas-de-final seria a União Soviética. Os comunistas haviam liderado seu grupo, goleando a Bélgica, ganhando por 2 a 0 de El Salvador e empatando com os mexicanos, donos da casa. Sob forte calor, a partida foi tensa e com poucas chances de gol. A classificação charrua, última vitória em mata-matas de Copa até os dias de hoje, veio com copeirismo puro. Faltando quatro minutos para terminar o tempo extra, Ancheta cabeceou uma bola alçada na área. A pelota sobrou para Luis Cubilla, que não conseguiu dominar. A bola então foi saindo mansamente pela linha de fundo, sob proteção de um soviético. O uruguai acreditou que dava para buscar e foi. A redonda rolava caprichosamente por sobre a linha, mas o jogador do Leste Europeu agia como se já tivesse saído. Foi então que Cubilla deitou-se rapidamente no chão, esticou a perna esquerda e chutou a bola por entre as pernas do defensor, recolhendo-a para dentro do campo. Com a perna direita, cruza para Espárrago, que cabeceia para o gol, diante dos soviéticos estupefatos, paralisados, depois indignados com o árbitro, que não teve pena de acabar com a carreira de um Leandro Guerreiro eslavo. O duelo semi-final marcaria então um reencontro. Brasil e Uruguai frente a frente, vinte anos após o Maracanazzo. Após a lição decretada por Gigghia, porém, o escrete canarinho havia se encorpado, vencido dois mundiais, tinha craques consagrados como Pelé e incontáveis opções de jogada com os seis homens do meio para frente mais Carlos Alberto. O Brasil vencera todas as partidas do Mundial até então. Na fase de grupos, numa chave dificílima, com três países europeus. Depois, passara pelo Peru e mostrara para o mundo que, se marcassem Pelé, haveria Tostão. Como já mostrava que tinha Jairzinho, com seus cinco gols em quatro jogos, merecedor que seria da alcunha de “Furacão da Copa”. Tinha tudo isso, o Brasil. Mas tinha também os fantasmas que insistiam em rondar a cabeça de todos e vestiam azul celeste. Logo aos 19 minutos do primeiro tempo, Brito cometeu um erro primário, entregando a bola nos pés de Julio Morales. O atacante deu belo lançamento para Cubilla, que surgia na grande área brasileira pela ponta direita, às costas de Piazza. Com um toque sutil, cruzado, talvez sem querer, enganou Félix, e abriu o placar para os charruas. Além das recordações do passado, os brasileiros também sofriam com a violência dos uruguaios. Mas não se pode dizer que ficaram com medo. O Brasil passou a responder com entradas duras, que culminaram no famoso cotovelaço desferido por Pelé em Fontes. Até nisso o homem era o melhor do mundo. Mas o Brasil passou o primeiro tempo errando muito, até que, aos 44, fez valer sua melhor qualidade: o vasto repertório de jogadas. O primeiro volante Clodoaldo acionou Tostão pela esquerda e correu para a área. Aí os dois jogadores deixam uma dúvida eterna: se foi mais lindo o passe do cruzeirense que encontrou o santista, ou o toque de primeira deste, com a parte de fora do pé direito, direto para o canto oposto do gol de Mazurkiewicz. Na segunda etapa, o Brasil voltou mais ligado. E mais que isso: Pelé voltou com fome. E aí meus amigos... No início do segundo tempo, Pelé pegou e pelota no meio do campo. Arrancou em velocidade e se livrou de quatro marcadores até ser derrubado quase dentro da área. Mas quem marcaria em uma arrancada fulminante seria o Furacão. Jairzinho rouba a bola no campo de defesa, toca para Pelé no meio e sai em disparada. Pelé se livra de um marcador às suas costas com um lindo toque, acionando Tostão. Este dá um toque à frente e depois lança para Jairzinho. Só com o corpo Jair engana Matosas e consegue ficar à frente. E aí, é caixa, com um leve toque rasteiro, ao lado de Mazurkiewicz. Eram 31 minutos da segunda etapa, e o Brasil mostrava toda sua superioridade. Os uruguaios nada podiam fazer para contê-los. A sorte ainda impediu os charruas de levarem o gol que Pelé não fez, naquele drible da vaca sensacional com o corpo. Aos 44 minutos, Rivelino matou a partida, em mais umas das assistências geniais do “Crioulo” naquela Copa. Procurando a Seleção Brasileira em campo, foi eliminada a última seleção celeste que conseguiu vencer um mata-mata. Da única que impunha algum respeito em campo, que pode se permitir sonhar mais alto em um Mundial. Assim os uruguaios seguem procurando. Procuraram Pelé, procuraram a Laranja Mecânica, a Dinamáquina. Seguem procurando seu antigo espaço na história das Copas. Seus craques, como Schiaffino. Líderes, como Obdulio Varela. Volta e meia, a mística ameaça ressurgir, como na partida contra Senegal, em 2002. A esperança continua.

Comentários

Samir disse…
Tchê, impressionante esse dado sobre as vitórias (ou vitória,única e solitária) dos uruguaios em Copas desde 70. Esperemos que, pelo menos diante dos Bafana-Bafana, a celeste possa reviver seus momentos de glória. Se bem que eu tb aposto neles contra os mexicanos...
Vicente Fonseca disse…
Recoba também pode entrar neste rol de bons jogadores. Mas craque mesmo era Francescoli.

Leandro Guerreiro eslavo foi sensacional.

Que se recupere logo a Celeste. Torcerei, como sempre.
Lourenço disse…
Brasil, Portugal, Uruguai e africanos. Essa é a minha torcida em 2010.
Prestes disse…
Me impressionei tb, Samir, ao pesquisar e constatar que os uruguaios só tem uma vitória em mundial após 70. E que nunca mais ganharam um mata-mata.

É muito pouco. É número de Austrália, Japão, etc.
Vicente Fonseca disse…
Eu já conhecia este levantamento assustador sobre o Uruguai. Assustador e triste. Tão triste quanto é ver que, nas últimas 10 Copas (1974 a 2010), o Uruguai só participou de cinco (1974, 1986, 1990, 2002 e 2010). Ou seja: desde 1974, foram 12 jogos e só esta vitoriazinha contra a Coreia, garantida no último minuto de jogo.
Prestes disse…
Unica e vitória e, diga-se, obra da família FONSECA.
Vicente Fonseca disse…
Sim! Caris Daniel Fonseca, bom atacante.
Daniel Roger disse…
E acabou que o Uruguai voltou mesmo a encarnar o espírito charrua em 2010, ganhando com superioridade e só parando na Holanda na semifinal. Forlán jogou muito! Já 2014 não foi tão bom, mas em 2018 o time charrua pelo menos ficou entre os oito. Tem meu carinho a Celeste.