Uma flecha lançada para o céu

Menos de oito minutos tinham se passado no Bento Freitas antes que o árbitro Marcio Chagas da Silva assinalasse aquela falta, no flanco direito de ataque, entre a meia-lua e a quina da grande área. Uma bola parada das mais perigosas, daquelas que o goleiro geralmente só consegue pegar mesmo no fundo da rede, enquanto o cobrador adversário comemora com sua torcida. Uma falta talhada para os pés de quem sabe que o lugar da bola, por mais que goleiros e defensores tentem evitar, é sempre lá, no fundo das redes. A torcida xavante presente naquele 24 de janeiro de 2008 sabia disso - e mais: sabia que, entre os onze atletas vestindo as cores do Brasil naquela tarde, havia um que seria perfeito para aquela cobrança. E imediatamente, quase inconscientes do que faziam, começaram a cantar o nome simples, de duas sílabas, quase um mantra do futebol apaixonado do interior gaúcho: Milar, Milar, Milar.

Claudio Milar, é claro, não se fez de rogado. Afinal, era a chance de entrar para a história do Brasil-PE, marcando seu centésimo gol com a camisa xavante. Uma marca rara nesses tempos de contratos curtos e trocas constantes de camisa, ainda mais num clube de estatura modesta e folha de pagamento idem. Tinha 99 gols, o uruguaio - a maioria deles marcados na temporada 2004, quando fez nada menos que um gol para cada um dos quarenta jogos que disputou pelo Brasil. Estrategicamente, tinha passado em branco uma semana antes, contra o São Luiz de Ijuí - afinal, o Brasil jogou fora de casa, e era desejo do ídolo comemorar o feito histórico diante da torcida que ele mais amou e que mais o amava.

Veterano de 14 clubes, desbravador que saíra do Chuy para meter buchas na Argentina, Turquia, Polônia e Israel, Roberto Claudio Milar Decuarda havia encontrado um lar em Pelotas, entre os gritos da torcida xavante e os desníveis do gramado do Bento Freitas. Pagou o carinho e o fanatismo com gols - muitos deles. E dirigiu-se para a cobrança, ansioso mas confiante, pronto para assinalar o mais simbólico de todos os gols de sua carreira.

Cientes de que aquela não era uma falta qualquer de um jogo qualquer, os valentes jogadores do São José bem que tentaram deter a marcha do Destino. Seis deles perfilaram-se na barreira, avançando a passos lentos como toda barreira do planeta faz. O goleiro Nei, como todos os goleiros que não querem ser coadjuvantes da glória alheia, gritava encostado na trave esquerda, orientando a posição da barragem que tentaria evitar o inevitável. Mãos na cintura, tentando controlar os nervos, Claudio Milar ouvia a torcida gritando seu nome enquanto seu pé direito preparava o chute mais marcante de sua vida. Ao ouvir o apito autorizando a cobrança, ele não tremeu. Correu sério, compenetrado, sem hesitações e sem despistes. Cobrou forte, alto, no canto da barreira. Um chute preciso, indefensável, daqueles que o goleiro só busca mesmo no fundo da rede. E assim foi. Centésimo gol de Cláudio Milar com a camisa xavante. Para a festa do torcedor, e para a alegria da História.

Braços para o ar, rosto transtornado pela emoção, trocando a camisa 7 pela de número 100 e ajoelhando-se para imitar um índio com arco e flecha: é assim que todos nós, que amamos o futebol, queremos lembrar de Claudio Milar. Um homem que, por questões financeiras, deixou várias vezes o Bento Freitas para trás - e que, por questões afetivas, acabava sempre retornando. Vencedor em terras estrangeiras, pai de família, pessoa gentil e amigável, artilheiro nos terrenos esburacados e de grama rala do interior do Brasil. Um herói humilde, como humildes eram aqueles que se alegravam com seus gols. É este Claudio Milar, e nenhum outro, que merece a lembrança e o agradecimento de todos que vibram e se emocionam com o futebol.

A passagem de um ano da morte de Milar, ocorrida em um trágico acidente com o ônibus que transportava a delegação do Brasil-PE, foi virtualmente esquecida pela mídia esportiva em geral. No entanto, não reclamaremos dessa não-lembrança, tampouco vamos resgatar detalhes de tão triste evento. Preferimos lembrar do que de fato interessa: hoje, 23 de fevereiro de 2010, fazem dois anos e um mês que Claudio Milar marcou seu centésimo gol com a camisa xavante. Um gol de falta, aos oito minutos e meio de jogo, numa quarta-feira de sol e de alegria no Bento Freitas. Esse é o grande feito, o mais belo momento, o maior legado que Roberto Claudio Milar Decuarda deixou para nós. Sejamos gratos, portanto - e celebremos a vida, sempre a vida, muito mais bela e bem mais útil que a morte. Vida longa a Claudio Milar. 

Foto: Claudio Milar e a comemoração nunca esquecida (Nauro Júnior)

Comentários

Ponso disse…
Muy lindo. Eu, que acabo de voltar do Uruguai, atesto: povo mais digno não há. E as uruguaias, ah, as uruguaias. Parecem todas feias de doce de leite, com uma pele cor de cuia, todas cremosas. Toco y me voy pra banda oriental!
vine disse…
Sensacional!
Vicente Fonseca disse…
Uma das imagens mais emocionantes do futebol gaúchos nos últimos anos, mesmo antes de ele morrer.
Igor Natusch disse…
E as uruguaias, ah, as uruguaias. Parecem todas feias de doce de leite...

Tenho certeza que um 't' passou batido pelo caminho, Ponsito =P

Lembrei agora de uma história que nem incluí no texto: a briga de Milar para recuperar as chuteiras que usou no jogo do gol 100, que sumiram no meio da comemoração ensandecida pós-jogo. Teve um verdadeiro trabalho de detetive envolvido na recuperação das preciosidades...
Vicente Fonseca disse…
Ah, agora entendi a consideração do Ponso. E verdade, nem lembrava dessa história da chuteira. Rende outro post, hein?