Ladislav Petras e a fé no futebol

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Petráš tinha vinte e quatro anos incompletos quando disputou aquela histórica partida, no ensolarado Jalisco de Guadalajara. Fora da então Tchecoslováquia, era um desconhecido – em seu país natal, porém, já era praticamente uma lenda viva. Desde o começo de sua carreira, no humilde Baník Prievidza de sua cidade natal, o jovem atacante se destacava dos demais, e não apenas pelo talento com a bola no pé. Dono da personalidade imprevisível comum aos gênios do futebol, Laci-Baci (como era chamado) ganhou notoriedade pelas atitudes inesperadas, às vezes beirando o surreal. Conta-se, por exemplo, que Petráš marcou três gols em determinada partida, um atrás do outro – e, após concluir o ‘hat trick’, simplesmente saiu andando de campo, um sorriso nos lábios, como que dizendo a todos que já tinha feito todo o serviço e que agora se virassem sem ele...
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Depois de uma temporada marcante no Dukla Banska Bystrica (1968/69), onde foi artilheiro nacional com 20 gols, Petráš foi contratado pelo FK Inter Bratislava, clube pelo qual jogou durante 10 anos e com o qual teria intensa relação. Tão ligado o jogador tornou-se ao clube e aos torcedores que uma vez chegou a fugir do hospital onde estava para disputar uma partida, retornando ao leito depois de ter disputado o jogo... Além das loucuras, Ladislav Petráš não economizava nos gols. Foi artilheiro nacional pelos aurinegros na temporada 1974/75, repetindo os 20 gols de sua primeira artilharia – e com direito a históricos cinco gols em um só jogo, marcados ainda por cima contra o poderosíssimo Sparta Prague. A partida em questão terminou em impressionantes 7 a 4 para o Inter, e não é a toa que se tornou um evento lendário no folclore futebolístico local. Curiosamente, Laci-Baci nunca conquistou um título nacional jogando com os žanety, o que não deixa de ser uma pena.
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Com um temperamento desses, era de se prever que a relação de Petráš com a arbitragem não fosse exatamente tranquila. De fato, expulsões eram comuns na carreira do atacante. Uma delas, inclusive, na partida decisiva que classificou a Tchecoslováquia para a Copa de 1970, disputada contra a Hungria em campo neutro (Marseille, na França) e vencida por 4 a 1. De qualquer modo, a relação tensa de Petráš com os juízes rendeu alguns momentos cômicos também. Em uma partida de 1976/77, disputada contra o Lokomotiva Kosice, os žanety saíram ganhando de 3 a 0, mas bobearam e permitiram dois gols do Lokomotiva, colocando em risco a vitória antes dada como certa. No meio da pressão, a bola saiu em lateral, e Laci-Baci tratou de fazer uma cera técnica, no seu estilo tão peculiar. Deixou a bola cair de suas mãos, chutou-a “acidentalmente” para longe de si quando foi pegá-la, e repetiu a pataquada umas três vezes antes que o juiz, furioso, colocasse a mão no bolso em busca do cartão amarelo. Vendo que seria punido, Petráš correu até o juiz, disse algo em seu ouvido e deu um tapinha amistoso na cabeça do árbitro. Resultado: fez o juiz dar uma risada, e escapou-se de forma marota de uma punição que poderia complicar ainda mais o jogo. O Inter Bratislava saiu com a vitória por 4 a 2, e Laci-Baci com mais uma história curiosa para sua coleção.
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Voltemos, então, para 1970, para o Jalisco em Guadalajara, para a estreia de Brasil e Tchecoslováquia naquela Copa que entraria para a história. Como lembramos no início, o Brasil saiu perdendo, gol de Petráš, em bela arrancada da intermediária e chute forte em diagonal, sem chances para Felix. Na comemoração, a surpresa: sorridente e emocionado, Petráš ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e juntou as mãos, em uma breve e comovida oração. Hoje em dia, estamos acostumados com a presença de Atletas de Cristo e com camisetas dizendo que Deus é fiel, mas na época uma manifestação do tipo não era muito comum. E não se esqueçam que, meros dois anos antes, o mundo tinha testemunhado a Primavera de Praga, lançando a Tchecoslováquia em um ferrenho regime comunista que perseguia a Igreja Católica sem nenhum constrangimento. Mais do que uma demonstração de fé, o gesto de Petráš foi um ato de rebelião, uma tomada de posição, praticamente um manifesto – uma atitude talvez inesperada vinda de um jogador tão imprevisível, mas sem dúvida dotada de profundo significado. Pena que depois Jairzinho a banalizaria, repetindo o gesto em uma demonstração menos de fé e mais de ignorância política. Nem sempre os vencedores são os únicos heróis, como se vê...
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Ladislav Petráš faria também o único outro gol de seu país naquela copa, em partida contra a Romênia. Anos mais tarde, participaria da maior conquista do Leste Europeu em todos os tempos: o título da Tchecoslováquia na Eurocopa de 1976, superando a então campeã mundial Alemanha Ocidental nos pênaltis. Foi a grande glória de Laci-Baci como jogador – em 1983 ele encerraria a carreira pelo WAC Viedeň, sem nunca ter conquistado um título nacional. Somente em 2000/01 é que Petráš sentiria o sabor de um título de clubes, conquistando pelo velho Inter Bratislava o campeonato eslovaco na posição de auxiliar técnico. Um título que não se repetirá, já que o Inter fechou as portas em 2009, engolido pelo FK Senica... De qualquer modo, Petráš segue ativo nas casamatas, e trabalhou por um tempo no minúsculo Rapid Bratislava antes de ser contratado para gerir a seleção eslovaca sub-21. Uma posição digna de um jogador que, mesmo temperamental, tem muito que ensinar, dentro e fora do campo. Não ganhou a Copa, nem do Brasil conseguiu vencer, mas ainda assim deixou sua marca. Palmas para ele.
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Foto: Ladislav Petráš tocando terror em uma zaga do Leste Europeu (Slovak Soccer).
Comentários
Mas não pedirei para abrir um blog Bola Tcheca, pois pegaria mal.
Sensacional a ambientação com os acentos tchecos, ijhdhdfshusfuhdsf
Como tu conseguiu??
E essa informação de que o Inter Bratislava acabou, hein? Tinha passado totalmente batida por mim. Um clube tradicional. O que aconteceu?
Quanto ao FK Inter Bratislava, foi mais uma vítima da estranha lógica clube-empresa que funciona no Leste Europeu. Aparentemente, o departamento de futebol era deficitário, de maneira que a ASK Inter Bratislava (fundação poliesportiva que desde 2004 era detentora dos direitos sobre a marca) resolveu vender o futebol, assim, sem mais nem menos. O FK Senica comprou o espólio, que inclui o estádio e, pasmem, a vaga na primeira divisão nacional - o FK Senica jogava na quarta liga local antes do negócio... Isso tudo se deu ano passado. Atualmente, o FK Senica joga na Liga principal do país, e o Inter Bratislava ainda existe, em esportes como basquete e ciclismo, mas sem departamento de futebol. É uma história complicada, que tentei resumir aqui - e, de qualquer modo, convenhamos que é até deprimente uma coisa dessas...