Sobre o futebol, e outros esportes aquáticos
Nesse momento, chove em São Paulo. Uma pancada bastante forte, daquelas cheias de fúria e energia, que logo se dissipa numa chuva mais leve, mas que contribui sobremaneira para que os engarrafamentos sigam batendo recordes mundiais de extensão. Essa chuvinha deve ter vindo do Rio Grande, penso eu com os botões imaginários da minha camisa, e isso obviamente me lembra de Internacional x Flamengo, no último domingo – partida que era para ser de futebol, mas graças ao aguaceiro e aos contratos envolvidos tornou-se uma demonstração de algum outro esporte qualquer, parecido com o bretão em alguns pontos, mas certamente bem mais feio e muito menos interessante. Lembra-me também de Grêmio x Palmeiras no ano passado, um dos maiores aguaceiros que já encarei em uma partida de futebol. E acaba me trazendo à mente também um terceiro jogo, bem menos chamativo, mas que serve como base para algumas reflexões.
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A partida em questão envolvia duas equipes tradicionais do futebol brasileiro, Corinthians e Santos – mas não era válida pelo Campeonato Brasileiro, e sim pelo Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2009, torneio organizado pela LINAF, entidade que congrega o futebol feminino não-profissional praticado no País. O torneio teve seu início em maio, e envolvia vinte clubes na disputa, permitindo a participação de atletas nascidas até o ano de 1994. O jogo era nada menos que a decisão do campeonato, e reunia uma equipe invicta (o Santos, no caso também chamado pela simpática alcunha Sereias da Vila) e um desafiante disposto a estragar a festa na Vila Belmiro (o Corinthians, no caso formando uma só equipe com a Unip e o São Caetano). O favoritismo santista era pleno – afinal, as moças tinham vencido todos os 22 jogos disputados até então, em assombrosos 100% de aproveitamento. Em resumo, um evento que tinha televisionamento acertado para toda a Baixada Santista e que prometia fechar de modo emocionante e digno um torneio quase sem repercussão, mas importante para valorizar o futebol feminino em um país que infelizmente costuma tomá-lo como motivo de piada.
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O problema é que a decisão estava agendada para terça-feira, 08 de setembro de 2009 – dia que foi agraciado, como todos ainda devem lembrar, com um dos maiores dilúvios que o estado de São Paulo já viu. Eu estava na cidade, e posso dizer: era impossível sequer cogitar colocar o nariz na rua, que dirá jogar futebol ou qualquer tipo de esporte atualmente conhecido pelo ser humano. Não houve outra solução a não ser adiar a disputa da finalíssima - muito embora, acreditem ou não, a decisão de 3º lugar entre Botucatu FC e Jaguariúna tenha sido disputada no mesmo dia e na mesma cidade de Santos, com a vitória nos pênaltis do Jaguariúna por 4 a 3. Imagino que a partida em questão fosse a preliminar do confronto decisivo, ainda que eu não consiga nem imaginar como fizeram para jogar a partida debaixo de tanta água...
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Seja lá como tenha se dado a façanha da disputa do 3º lugar, o fato é que a decisão em si foi adiada para o dia 15 de setembro. E então, com sol, público de sete mil pessoas e transmissão ao vivo pela TV da região, o Santos confirmou sua campanha invicta e venceu o Corinthians por 2 a 1. O time visitante saiu ganhando, com um gol de Bebel, mas as Sereias da Vila foram para cima, vencendo a retranca corintiana e virando o jogo na segunda etapa, com gols de Janaína e Ketlen. A taça, entregue pelos presidentes da LINAF e do Santos FC, foi recebida com grande alegria pelas jovens atletas, e aquela tarde de terça-feira foi certamente mais feliz e luminosa na Baixada Santista, colorida pelos sorrisos e pela festa de quem joga futebol com raça, com coragem e, especialmente, com muita paixão. Um final feliz, sem dúvida.
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O exemplo singelo que citei acima serve para várias coisas – e entre elas, para provar que dá sim para adiar um jogo de futebol quando chove demais, sem que isso seja considerado um aborto da natureza ou coisa de outro planeta. Todas as recomendações técnicas, esportivas e de bom senso determinavam a transferência da partida de domingo entre Inter e Flamengo no Beira Rio, sob pena de transformar um jogo importante em uma piada sem a menor graça. Isso para não falar no risco de lesões para os jogadores, e no desrespeito aos torcedores, tanto os que não tiveram coragem de ir quanto os que certamente voltariam felizes da vida para casa sabendo que a partida seria jogada em outro dia. Todos os envolvidos queriam o adiamento – treinadores, jogadores e até os dirigentes dos dois clubes defendiam que do jeito que estava não tinha como jogar. Mas, como todo mundo sabe, a partida aconteceu. No mundo encantado do futebol transformado em cifrões, adiar um jogo é perder dinheiro – é renegociar taxas de Pay Per View, pagar diárias extras para arbitragem e funcionários ligados ao jogo, é ter que lidar com a gritaria de patrocinadores dos eventos, é ser forçado a procurar datas num calendário já estrangulado pela necessidade de ter jogos suficientes para fechar as grades das emissoras de televisão. Ou seja, dane-se o desequilíbrio técnico, os riscos à integridade física dos atletas, os transtornos de quem vai ao estádio, a valorização do esporte como um espetáculo e como entretenimento de massa. Para o inferno com tudo isso: dá um jeito aí, seu juiz, e faz a partida acontecer, senão sabe-se lá como serão os próximos sorteios de arbitragem...
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O teste do gramado do Beira Rio, feito pelo árbitro Sandro Ricci, escancara o tipo de lógica que moveu a sua decisão. O juiz limitou-se a deixar a bola rolar no centro do gramado – onde, embora visivelmente encharcado, o campo ainda permitia algo próximo do futebol. Nas laterais do campo, que até os cegos viam ser a parte mais alagada, o árbitro nem chegou perto, pelo mais óbvio dos motivos: se deixasse a bola cair ali, ficaria mais claro do que já estava que jogar naquela situação era um disparate, e não daria sequer para disfarçar o caráter mercantilista que movia a decisão de autorizar o jogo. Feito o mise-en-scène, algo remotamente parecido com futebol se deu no Beira-Rio, para lucro de poucos e para derrota do esporte bretão. Em Santos, onde o futebol ainda é um esporte e o mundo encantado dos cifrões não tem peso, o bom senso pôde prevalecer – e não apenas lá: no mesmo dia, e na vizinha Viamão, os juniores do Inter deixaram de estrear contra o Tamoio pela Copa Alceo Bordignon em virtude das chuvas. Aguaceiro que, pelo visto, molha mais alguns gramados do que outros, e deixa claro que, no futebol de hoje, o espetáculo não pode parar - mesmo que, no fim das contas, acabemos ficando sem espetáculo algum para apreciar.
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Foto: Linaf
Comentários
E há datas, sim. Quando o Zveiter quis, remarcou 11 jogos sem o menor pudor. Não era tão difícil fazer o jogo acontecer noutro dia.
Teria data durante as eliminatórias para fazer a partida.
Existem vários problemas atuais, imaginei alguns.
Como eu, empresa de televisão, vou explicar pro cara que comprou um espaço no intervalo de Inter e Flamengo que não vai ter jogo?
E outro: como vou fazer se os caras que compraram no pay per view SÓ aquele jogo, alegarem na Justiça que pagaram para ver NAQUELE horário?
Sobre patrocinadores, certamente existe uma cláusula que protege todos os envolvidos em caso de adiamento da partida.
Mas me tirem uma dúvida: pelo estatuto do torcedor, a partida não deve ser realizada no dia seguinte, com portões abertos?