O tapa de luva de Tite


IGOR NATUSCH*
Em algum momento da transmissão televisiva pós-título do Corinthians na Libertadores 2012, uma das câmeras concentrou-se no rosto de Adenor Bacchi. Ele sorria, obviamente tomado pela felicidade, enquanto aguardava para receber a medalha que simboliza seu triunfo. De repente, seu olhar mudou de direção, e pareceu claramente que ele olhava para a câmera, embora talvez estivesse a cumprimentar alguma outra pessoa em algum ponto no meio do caminho. Impossível dizer. Seja como for, apontou na direção da câmera, sorriu e disse claramente, de forma pausada e confiante, perfeitamente decifrável para qualquer tipo de leitura labial:

- Competência. Bom trabalho.

Na minha leitura, essas três palavras foram mais do que um desabafo ou mesmo do que uma declaração de princípios. Foram um tapa de luva daqueles. E que deve ter doído fundo em muita gente por aí. 

Tenho certeza que ele lembrou, no decorrer da partida de hoje, da eliminação para o Tolima na Libertadores do ano passado. Quando desabou sobre sua cabeça a fúria da torcida corintiana, passional e imediatista como qualquer torcida do universo conhecido e além. Momento em que a imensa maioria dos clubes brasileiros, para dar satisfação ao torcedor, simplesmente chama algum aventureiro e manda embora o treinador fracassado da vez. Coisa que Tite, diga-se, viveu várias vezes na carreira. Seja como for, o Corinthians campeão da América pode ser criticado por muitas coisas, desde o espaço excessivo na mídia até os estranhos conchavos que garantem privilégios concretos, como o Itaquerão, e subjetivos, como as muitas "ajudas" de arbitragem; não poderá, porém, ser criticado por ter conquistado um título ao acaso. Acreditou em um projeto, investiu nele, manteve Tite em meio à tormenta. Muitos, inúmeros foram os que disseram que ele devia sair. Que pouco ou nada sabia, que tinha poucos títulos na carreira, que era um enrolador que muito falava e pouco fazia e que com ele o Timão nunca iria a lugar algum. Pois ficou. E ganhou quase tudo dali para frente.

Time ruim? Nada disso. Emerson Sheik, Danilo, Alex, Liédson, Ralf, Paulinho, Jorge Henrique, William... Se esses jogadores, reunidos em um só plantel, formam um time fraco na sua opinião, resta sugerir que o amigo/a vá apreciar outro esporte, pois futebol não há de ser exatamente o seu chão. E mesmo assim consigo concordar que o Corinthians PARECE às vezes ruim, um time sem estrelas, que arranca resultados na base do oportunismo e da entrega coletiva. E isso, leitor/a, é um mérito completo de Adenor Bacchi: fazer com que uma equipe recheada de potenciais estrelas seja coesa e voluntariosa como os melhores times do interior do Rio Grande do Sul, por exemplo. Transformar o que costuma ser mérito dos times de pouca fortuna em característica central de um elenco caro e recheado de opções é coisa que só um treinador de grande qualidade é capaz de fazer. Tite fez.

E a última partida coroou de forma plena a decisão de mantê-lo, coroou o time montado pelo Corinthians e o trabalho do treinador que sobreviveu ao maremoto. Foi mais do que o Corinthians vencer o Boca Juniors: foi Tite dar um verdadeiro baile do ponto de vista tático e de trabalho. Não se preocupou Adenor Bacchi apenas em escalar jogadores ou em discursos motivadores de vestiário. Entendeu seu próprio time, compreendeu eventuais carências, procurou corrigi-las. Estudou o Boca. Trabalhou para vencer. E o que vimos pode não ter sido um espetáculo performático de futebol ofensivo e pujante, mas foi um deleite para quem gosta de tentar entender o que acontece em um jogo de futebol. 

O Boca, sempre tido como ameaçador fora de casa, pouco ou nada fez. Teve talvez os primeiros 20 minutos de iniciativa, jogando com mais desenvoltura, mesmo assim sem chances reais de gol. Depois desse período de insegurança normal em um time que pela primeira vez chega a uma final continental, só deu Corinthians. Primeira linha de marcação levemente adiantada, recuperava a bola com frequência, longe da própria goleira, evitando o já tradicional modo Boca de valorizar posse de bola. Emerson Sheik estava sempre em cima de Schiavi, tentando forçar um dos atualmente frequentes erros do zagueiro. O ataque do Boca morria à míngua, enquanto Riquelme - uma lembrança assustadora para quem foi ao Olímpico na final de 2007 - afundava solenemente em uma partida de imposição técnica praticamente nula. Talvez alguns reclamem por não ter o Corinthians, jogando em casa, "ido para dentro" do Boca Juniors. Mas me parece uma crítica frágil, já que em nenhum momento isso foi necessário. Só um dos dois times podia ser campeão na noite de quarta-feira: o Corinthians. Porque só o Corinthians jogou. Como quis, e quando quis.

Campeão invicto, sofrendo apenas três gols em toda a Libertadores da América, o Corinthians não é eficiência isolada na carreira de Tite. Lembrem do Caxias campeão gaúcho de 2000, por exemplo. Do assombroso Grêmio de 2001 - capaz, esse sim, de jogar um futebol de encher os olhos e ir para dentro de Corinthians e São Paulo fora de seus domínios. Um time bem diferente do Corinthians 2012, aliás, o que prova que Tite não é jóquei de um cavalo só. Alguns talvez lembrem do São Caetano de 2004, eliminado nas quartas-de-final da Libertadores pelo próprio Boca Juniors em uma disputa que só se definiu nos pênaltis. E o Inter campeão da Sul-Americana em 2008? Mesmo o vice-campeão da Copa do Brasil no ano seguinte merece lembrança pela campanha. Times diferentes em uma série de características, unidos praticamente em uma só coisa: a presença de um treinador competente, que lê o grupo e chega a uma conclusão antes de direcionar seu trabalho. Um treinador de verdade, não um distribuidor de camisetas, uma vedete ou um mero motivador. Um tipo de pessoa que temos dificuldade de reconhecer e elogiar, nesse Brasil tão acostumado ao oportunismo e às soluções mágicas: um homem que trabalha. Não se trata de endeusar Tite, mas sim o tipo de profissional que ele representa - algo que os mais obtusos e céticos talvez sejam incapazes de entender mas que, podem acreditar, faz toda a diferença. 

Competência. Bom trabalho. Com duas sentenças curtas e uma elegância já tradicional em alguém que sempre valorizou os conceitos, Adenor Bacchi dizia, na verdade, algo bastante simples a todos os seus críticos. Chupem, dizia ele. Venci. Sou campeão. E pelos meus próprios meios. Abraçado na minha verdade, não na de vocês. Chupem.

E que chupem, mesmo. Adenor Bacchi, o cara que não serviu ou não servia para muitos clubes e críticos, mesmo após uma série de trabalhos que nada tinham de ruins. O treinador que virou piada pelo modo não raro enrolado e rebuscado como tentava explicar suas visões de futebol. É ele, Tite, quem sorri agora, junto com a torcida do Corinthians - outra que muitos achavam que nunca faria festa de tal magnitude, aliás. Um dos únicos treinadores brasileiros que pode pronunciar a palavra "trabalho" sem que ela nasça morta em sua boca. Porque esse cara, definitivamente, trabalha. E é campeão da América. Com competência, e com um ótimo trabalho, de ponta a ponta. 

* Jornalista do Sul21 e colaborador do Carta desde 2009.


Comentários

Lourenço disse…
E tinha gente que não gostava dele, quando treinava o Inter. Torço muito para que volte ao Grêmio.
Vicente Fonseca disse…
Sempre gostei também. Baita técnico. Formou um dos melhores times do Grêmio, um dos melhores times do Inter e um dos melhores times do Corinthians que vi jogar. Não é coincidência. E cada um tinha o seu modo de jogar, suas qualidades próprias, provando que ele sabe tirar o melhor de cada elenco.
Anônimo disse…
Agora todo mundo gosta dele. Em 2009, o #foratite virou TT. Ah, os resultados...
Vicente Fonseca disse…
Muita gente sempre elogiou o Tite por aqui, inclusive em 2009. Houve grandes discussões aqui a respeito disso. É só ir nos arquivos e ler, meu caro.
Prestes disse…
O Tite sempre foi bom treinador, mas algumas das críticas feitas a ele procediam, ele é que mudou, não os críticos que estavam errados.

Por exemplo: a falta de convicção. Tite era rei de fazer concessões para imprensa, torcida, dirigentes. Mexia em times que estavam dando certo.

Desta vez não. E era fácil mexer. Reclamações de que o time era retranqueiro (o que, de fato, era) não faltaram. Mas ele não mudou.
Vicente Fonseca disse…
Sem dúvida. Eu não morro abraçado com técnico nenhum. Se vai bem, tem que elogiar; se vai mal, tem que criticar. O que não dá é pra mudar de conceito em relação a um técnico por causa de um mau trabalho.

Acho o Mano Menezes um treinador excelente, mesmo que seu trabalho na seleção seja péssimo. No Inter, Tite teve ótimos momentos no começo de 2009 (já disse, pra mim, o melhor Inter que já vi jogar foi aquele do começo daquele ano), mas se perdeu depois. Isso não significa que ele tenha virado um técnico ruim de uma hora para outra, nem um técnico ótimo agora, por causa do Corinthians.

É um técnico muito competente. E lamento que a direção do Grêmio não queira contratá-lo por "incompatibilidade de ideias". Diria que isso é bem preocupante, inclusive.
Igor Natusch disse…
Supor oportunismo alheio sem elementos para tal é o mais pobre dos argumentos. Lamento, apenas.

Quanto ao Tite ter problemas no quesito convicção (algo que realmente aconteceu em certas oportunidades, como aponta o Prestes), acho que é um defeito que se manifesta quando ele se sente inseguro no cargo que ocupa - algo natural, no fundo, para todos os profissionais que gostam do seu emprego e começam a acomodar interesses para mantê-lo. O caso das "ovelhinhas", por ex, se deu quando ele tinha um bom tempo de casa no Grêmio. Mesma coisa no Internacional. Não me parece algo INTRÍNSECO a Adenor Bacchi, e sim um recurso em momentos de tensão.
Marcelo Sperling disse…
que seja também um tapa na cara do inter, que esculachou esse treinador pra dar lugar a sabe-se lá quem.
Vine disse…
Lembro de dois momentos bem distintos do Tite no Inter. O primeiro foi no primeiro jogo da final da Sul-Americana em 2008, onde Guiñazu foi expulso, em seguida o Inter fez gol de pênalti e o time passou a jogar com duas linhas de quatro, de forma perfeita, anulando o Estudiantes. Fiquei sabendo, na época, que, quando desempregado, Tite viajou pra Europa apenas pra observar como funcionava um time com essas duas linhas. Treinador interessado e apaixonado pelo trabalho, portanto.
Já o segundo foi durante 2009, onde o Inter tinha um time até bem montado, mas quase nulo no ataque (ao menos era o que eu observava). O time jogava de modo feio, pouco eficiente, embora não perdesse muitos jogos. Eu era um que pedia sua saída. Quando aconteceu, percebi que, com ele, o Inter brigava o tempo inteiro pelo título brasileiro...

Só pra terminar, acho que ele deu uma amadurecida legal no Corinthians. Sabe-se lá se foi por causa da filosofia do clube, da pressão, do grupo, etc, mas ele realmente teve um crescimento.